Ilustração: corpo de vítima de feminicído jogado no matagal

Violência no namoro: o risco de acabar em feminicídio

Publicado em 26/08/2018

VANESSA CORTEZ
Especial para o JC

PORTO (PORTUGAL) – Foi em um café à beira-mar na cidade do Porto, em Portugal, que a estudante universitária Inês* trocou olhares pela primeira vez com José*. Cruzaram-se algumas vezes naquele lugar até que ele tomou a iniciativa de se conhecerem melhor. “Rapidamente me encantei e me deixei levar”, lembra Inês. Mas o que parecia o início de uma história de amor daquelas de filme durou apenas três semanas. O tom cortês e os carinhos de José que tanto encantaram a jovem deram lugar a um comportamento intimidatório e agressivo. “Era ir à varanda e ele estava do outro lado, me observando. Era sair de casa e o carro dele passava várias vezes por mim. A cada movimento que eu fazia, recebia mensagem perguntando onde estava. Um controle desenfreado. Perdi cinco quilos”, conta a estudante, vítima de um fenômeno que tem chamado cada vez mais a atenção de pesquisadores, porém ainda banalizado: a violência no namoro entre adolescentes e jovens.

No Recife, em pesquisa realizada em 2016 com 196 universitários, entre 15 e 24 anos de idade, 26,5% afirmaram já ter praticado violência contra a(o) parceira(o) e 31,6% disseram ter sofrido violência em algum momento da relação. A psicológica é a mais comum entre os jovens casais. “A cada dia eu ficava mais assustada, o comportamento dele escalava de carinhoso a obsessivo, tentando controlar sempre tudo o que eu fazia”, recorda Inês. Foi esse o tipo que atingiu com mais frequência os estudantes recifenses (25,5%). Ainda de acordo com o levantamento, 38,8% das meninas afirmaram ter sofrido algum tipo de violência durante o relacionamento, enquanto o número de meninos que passaram pelo problema foi bastante inferior: 11,2%.

“Nesse estudo foi possível perceber que eles conseguem identificar o que é violência nos relacionamentos, porém apresentam dificuldades em se perceber como agressores”, explica Jéssica Lins, educadora física e mestra em hebiatria, especialidade que cuida da saúde dos adolescentes. Ela é autora do estudo "Adolescentes e jovens universitários frente à violência nos relacionamentos afetivos-sexuais", apresentado em 2017 e que ainda será publicado.

Estudiosos concordam que a definição do que é violência para os jovens cai no senso comum: se resume à agressão física e sexual, quando, na verdade, há um conjunto de atitudes violentas como ameaça, empurrões, puxões de cabelo, críticas à roupa que a parceira está vestindo, perseguição, entre outras ações não reconhecidas como tal. “Os jovens confundem muito a violência na relação com gestos que, para eles, representam carinho e cuidado. E isso, quando não combatido, torna-se escalada para outros tipos de violência mais graves”, reforça a assistente social e mestra em hebiatria Janaina Machado, responsável pela dissertação "Sentimentos e atitudes de adolescentes frente à violência no namoro", defendida no ano passado.

Ilustração:

A publicação é baseada em uma pesquisa também feita no Recife, em 2014, só que com estudantes mais novos (entre 12 e 18 anos). Os números mostram que um em cada três (33,4%) admitiu praticar e/ou sofrer violência no namoro. Entre os dados obtidos, um deles chama a atenção: o de jovens que nada fizeram em relação à violência, sendo 35,3% entre as vítimas e 67,9% entre os agressores. “Representa um dado bastante preocupante, uma vez que esse sentimento de normalidade acaba reverberando em atitudes, contribuindo para a naturalização deste tipo de violência e, portanto, sua invisibilidade”, diz a pesquisadora.

Mafalda Ferreira, coordenadora-executiva do projeto UNI

Acreditamos que a maior forma de prevenção da violência no namoro é a educação. E esta educação tem que vir desde cedo, porque acontece cada vez mais cedo. Mesmo que não consigamos mudar todas as mentalidades, há sempre alguém que fica com a semente. Nós plantamos a semente”

Mafalda Ferreira,
coordenadora-executiva do projeto UNI+

Atos agressivos vistos com normalidade pelos jovens, na maioria das vezes, têm origem dentro de casa e nos locais em que eles convivem. “Adolescentes que vivenciam violência na comunidade/família apresentaram quase quatro vezes mais chances de perpetrar violência no namoro”, explica a professora doutora Alice Kelly Barreira, com base em uma pesquisa da qual participou e que foi coordenada pelo Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), da Fiocruz, em dez capitais do Brasil com 3,2 mil adolescentes.

Até hoje, o estudo abrangente é referência na área e mostrou o quanto o problema presente em todo o País é preocupante: nove em cada dez jovens já haviam sofrido e/ou praticado ato violento no namoro. No recorte da capital pernambucana, 84% dos entrevistados estiveram no papel de vítima e/ou agressor. Os resultados foram conhecidos em 2011 e, de lá pra cá, não se tem conhecimento de nenhum outro estudo em larga escala feito no País, apesar dos índices assustadores.

OS DADOS ALÉM-MAR

Enquanto estudos sobre a violência no namoro engatinham na América Latina e no Brasil – apesar da violência de gênero apresentar índices alarmantes nesses lugares – na Europa, especialmente em Portugal, o tema vem sendo amplamente estudado desde a década de 1990. Foi justamente com o intuito de combater essa invisibilidade que nasceu o projeto UNI+ Prevenção da Violência no Namoro em Contexto Universitário, no distrito do Porto, no norte português.

Financiado pela Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, o programa UNI+ é fruto dessa discussão. Inês, a estudante mencionada no início do texto, é uma das jovens que recebem atendimento psicológico e aconselhamento no Gabinete de Apoio às Vítimas, que faz parte do programa e funciona no Instituto Universitário da Maia e também na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Além do espaço de acolhimento, há o Observatório da Violência no Namoro – plataforma online de denúncia informal – sem qualquer ligação com as autoridades policiais, criado em abril do ano passado com o objetivo de colher dados sobre o fenômeno da violência entre os jovens. Esse observatório acaba por ser um canal de encorajamento para as vítimas pedirem ajuda.

De acordo com a coordenadora-executiva do projeto UNI+, Mafalda Ferreira, a plataforma, que recebeu 151 denúncias nos primeiros 12 meses de funcionamento, foi criada com a intenção de dar visibilidade aos números da violência no namoro que ainda não aparecem nas estatísticas formais. “Falta conhecimento do que vai acontecer a partir do momento em que se faz a denúncia e há o medo da reação do agressor, que será notificado quando feita a denúncia formal. Mas a maioria dos casos é porque a vítima não se identifica como vítima”, explica.

Semelhante ao Brasil, as estatísticas coletadas pelo Observatório da Violência no Namoro em Portugal apontam que a maioria das vítimas (90,7%) é do sexo feminino, enquanto os agressores são do sexo masculino (94,7%). A violência psicológica é a mais comum (90,7%), seguida da violência física (53,6%), violência social (33,1%), perseguição (29,1%) e violência sexual (17,2%). Apenas 13,9% das vítimas apresentaram queixa às autoridades.

Inês lutou contra o medo e encarou os processos burocráticos e, por vezes, desestimulantes da denúncia. Quase desistiu. “O sistema tem muitas falácias e os profissionais não estão devidamente preparados, carecem de sensibilidade para lidar com este tipo de situação, o que por si só desmotiva as vítimas a exercerem os seus direitos, optando na maioria das vezes pela desistência da queixa. Eu tive essa vontade. Mais ainda quando passei para a fase seguinte, a do Ministério Público. O que me levou a manter a denúncia e resistir ao desânimo incutido pelo sistema jurídico foi o suporte de apoio incansável da parte do UNi+”, relata.

Além da pesquisa e apoios oferecidos pelo programa, outro braço importante são as ações de sensibilização que ocorrem nas escolas, universidades, bibliotecas e entidades privadas. “Acreditamos que a maior forma de prevenção da violência no namoro é a educação. E esta educação tem que vir desde cedo, porque acontece cada vez mais cedo. Nas formações passamos sempre um questionário de verdadeiro e falso, antes e depois, sobre crenças, papéis de gênero e a violência. No final, a percepção dos que estão ali muda. E, mesmo que não consigamos mudar todas as mentalidades, há sempre alguém que fica com a semente. Nós plantamos a semente”, orgulha-se Mafalda Ferreira.

* Os personagens têm nomes fictícios

A irmã Assucena e a avó, Maria Helena seguram foto de Edilene

SAUDADE A irmã Assucena e a avó, Maria Helena, lamentam a morte brutal de Edilene. Agora elas querem justiça

SAUDADE A irmã Assucena e a avó, Maria Helena, lamentam a morte brutal de Edilene. Agora elas querem justiça

Crime de gênero é a principal causa de assassinatos

Publicado em 26/08/2018

CIARA CARVALHO
[email protected]

Entre os crimes com motivação previamente definida, o feminicídio é, hoje, a principal causa de assassinatos de mulheres em Pernambuco. Nos sete primeiros meses de 2018, 146 mulheres foram executadas no Estado. Em 30,1% desses casos, a morte foi determinada pela condição de gênero. Só no mês passado, foram contabilizados sete novos crimes. De janeiro a julho de 2018, os feminicídios já fizeram 44 vítimas. Um número que pode ser ainda maior. Já que, em 25,3% dos assassinatos, a motivação não foi sequer esclarecida pela polícia.

O total de casos de feminicídio contabilizados pelo projeto #UmaPorUma é o somatório dos indiciamentos feitos pela Polícia Civil (após a conclusão do inquérito) mais as denúncias oferecidas à Justiça pelo Ministério Público de Pernambuco. Em todos eles, o padrão de posse, misoginia e humilhação da mulher (e de seu corpo) se repete com uma perversidade desconcertante. O que mais revolta é a sentença decretada, não de forma sutil, velada. Mas, violenta e definitiva: ela não tem o direito de escolher o próprio destino.

Em Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife, a bancária aposentada Sandra Viana Macena Botelho, 55 anos, estava decidida: iria recomeçar sua vida. Naquela manhã de terça-feira, dia 18 de julho de 2018, deixaria para trás a bebedeira geralmente seguida de agressões do marido, o mecânico Maurício Nunes Viana, com quem se relacionava há 37 anos, sendo casada há 32. Sandra estava arrumando as malas, no quarto do casal, quando foi alvejada por quatro tiros disparados pelo companheiro, que não aceitava a separação. Após matar a mulher, Maurício atirou contra a própria cabeça.

Foi igualmente por querer se reinventar que a empresária Maria Helena Barbosa da Silva, 42, perdeu a vida. Por mais de 15 anos, preferiu se anular para evitar desentendimentos e crises de ciúmes do marido. Deixou vaidade e amizades de lado. Cansada da relação abusiva, no início deste ano, Maria Helena pediu o divórcio. Passou a cuidar da aparência, recuperou a autoestima e fez novos amigos. No dia 29 de julho, em Sairé, no Agreste do Estado, o marido pôs fim à nova vida de Maria Helena. Durante uma discussão, o agricultor João Pedro da Silva Júnior, 39, usou um banco de madeira para atingir sua cabeça. Os golpes foram tão fortes que causaram abertura do crânio e perda de massa encefálica.

O rosto e o corpo de Edilene Maria Ramos, 31, também ficaram desfigurados. Após mais uma briga, entre tantas que sempre tinha com o companheiro, a jovem terminou morta, na Ilha Joana Bezerra, bairro na área central do Recife. Foi encontrada no chão do banheiro, banhada em sangue e golpeada na cabeça por um vaso sanitário. Mulher de personalidade forte, ela tentou se separar. Mas terminava voltando. Dando uma chance. E mais outra.

“Acho que ela estava aprisionada. Porque não era amor. Ninguém que ama faz o que ele fez. Acho que ela tinha medo dele. E não conseguiu se libertar”, diz a irmã, Assucena Maria Ramos, 23. Ao lado da avó, Maria Helena da Silva, 78, que criou as duas netas como se fossem filhas, Assucena mitiga a dor, tentando usar a experiência trágica da irmã para ajudar outras mulheres: “A gente tem que se unir, apoiar umas as outras, nunca julgar.”

Ilustração de mulheres sem face

Brutalidade de crimes expõe desprezo

Publicado em 26/08/2018

ROBERTA SOARES
[email protected]

Quase sem vida, Maria Aparecida ainda conseguiu indagar a seu assassino a razão de tanta violência: “Por que você fez isso comigo?”, perguntou, antes de cair morta na porta de casa. Nem imaginava que o gesto mais cruel ainda estava por vir. O homem que a matou a degolaria momentos depois e, como se não bastasse, exporia sua cabeça no muro de entrada da residência. Antes, teria feito ‘embaixadinhas’ com a cabeça da mulher. Queria humilhá-la. A morte não era suficiente. Era preciso expor o desprezo. Albertino Fortunato, pedreiro, morreu de um acidente vascular cerebral (AVC) na prisão menos de um mês após ser preso como assassino confesso da amante, Ana Maria da Silva, a quem esquartejou para conseguir livrar-se do corpo. Depois de matá-la, no mês passado, com uma pancada na cabeça, precisava acomodá-la em bolsas para esconder o crime. Cortou o corpo em pedaços e o jogou, de qualquer jeito, em um canavial de Ipojuca, no Grande Recife.

Como explicar tanta violência em tantos casos de feminicídio? Por que tamanha brutalidade no ato de matar as mulheres? “Porque são mulheres. Por isso. Esse demônio que matou a minha mãe e fez o que fez com o corpo dela não faria o mesmo se fosse um homem. Ele se irritou porque minha mãe não quis ter relações com ele e simplesmente a matou. Enfiou uma faca no pescoço dela. Em seguida, revirou a casa. Roubou o pouco que tinha e fugiu. Depois voltou para confirmar se estava morta e a degolou. Por pura maldade. Como se não bastasse, pendurou a cabeça dela no muro para humilhá-la. Fez isso para dizer que minha mãe não era nada. É um demônio. Por isso, o que esperamos é uma pena máxima, que ele morra na prisão”, afirma, com ódio na voz, Maurílio José da Silva Neto, único filho (homem) de Cida, como a diarista e costureira Maria Aparecida dos Santos Fidelis, 52 anos, era conhecida na Comunidade Novo Horizonte, em Barra de Jangada, Jaboatão dos Guararapes. Ela foi morta em dezembro do ano passado.

Diante de tanta violência, não seria o caso de penas mais duras para esses crimes? Para a Polícia Civil, primeira responsável por fundamentar as futuras punições desses assassinos, não. O problema está no cumprimento da pena. É essa etapa que precisa ser mais dura.

Mulher decapitada

“A extrema violência já é enquadrada nas qualificadoras, como a prática de crimes por motivos fútil, torpe, sem chances de defesa entre outros. Se generalizarmos demais, atrapalha no julgamento. A violência empregada nos crimes é profundamente considerada pelos juízes e jurados. Pesa na sentença. O que precisamos é fazer com que os condenados fiquem mais tempo na prisão. Que cumpram mais anos de suas penas no regime fechado. Hoje, uma pessoa condenada por homicídio no Brasil cumpre apenas um terço da pena e ganha a progressão de regime. Nos casos de crimes hediondos, esse tempo é um pouco maior – dois terços – mas ainda é pouco. Essa é a questão. É isso que precisa ser modificado”, defende o delegado Osias Tibúrcio, titular da Delegacia de Piedade e quem concluiu o inquérito que esclareceu a morte de Cida.

O suspeito de matar Maria Aparecida, Alefy Richardson da Silva, 22, entretanto, não foi indiciado pelo crime de feminicídio. Apenas por homicídio qualificado e vilipêndio de cadáver. O delegado entendeu que, como ainda não havia uma relação amorosa – vítima e assassino se conhecerem naquele dia – não se tratava de um crime de gênero. Mas o entendimento mudou e o caso – para alívio da família de Cida – passou a ser considerado feminicídio após a denúncia oferecida pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) à Justiça. E é assim que o acusado será julgado.

No caso do assassinato de Ana Maria da Silva, o pedreiro Albertino Fortunato foi indiciado por feminicídio. O ato de esquartejar a amante para livrar-se do corpo entrou como mais uma qualificadora. Ganharia peso no Tribunal do Júri, mas não haverá tempo porque, com a morte do suspeito, o caso será arquivado. Tamanha violência ficará sem punição.

Infográfico: 44 mulheres foram vítimas de feminicídio em Pernambuco nos sete primeiros meses de 2018
Nadine Gasman, porta-voz da ONU Mulheres no Brasil

"Todo assassinato de mulher deveria ser investigado como feminicídio"

Publicado em 26/08/2018

CIARA CARVALHO
[email protected]

A porta-voz da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, é enfática: todo caso de assassinato de mulheres deveria, de cara, ser tratado como feminicídio. Porque isso muda o olhar do investigador para a cena do crime. Porque evita que provas importantes se percam na hora de apontar a motivação de gênero. Justamente o contrário do que é feito hoje. Não raro, casos de feminicídio até são investigados como homicídio qualificado, mas sem considerar a qualificadora que aponta a motivação de gênero. O que só aumenta a subnotificação dos crimes onde a mulher é assassinada pela condição de ser mulher. Nessa conversa com o projeto #UmaPorUma, Nadine Gasman reforça que a solução para a violência contra a mulher está na prevenção. É o que todos os especialistas apontam, mas, na prática, esse caminho ainda está longe de virar realidade.

JORNAL DO COMMERCIO - O Senado brasileiro aprovou no início do mês de agosto de 2018 projeto de lei que cria o crime de importunação sexual, para enquadrar, por exemplo, os casos de assédio em transporte público. Até que ponto a senhora avalia que iniciativas como essa, de fato, conseguem reduzir a violência contra a mulher? A punição, por si só, intimida o agressor?

NADINE GASMAN - As penas, sozinhas, não são suficientes, mas são necessárias. É um avanço. Mostra muito claramente para a sociedade brasileira que essa conduta é um crime e não será mais aceita. Essa mensagem é muito importante. Agora para uma lei ter eficácia precisa ser efetivamente implementada. E ela precisa estar associada a medidas de prevenção, ao empoderamento das meninas. Não é uma ação isolada que vai erradicar a violência contra a mulher. E, sim, um conjunto de abordagens integradas. Tem que investigar, processar e julgar com uma perspectiva de gênero.

JORNAL DO COMMERCIO - A Lei do Feminicídio completou três anos, ainda amargando índices altíssimos de assassinato de mulheres no País. Por que esse quadro não muda?

NADINE GASMAN - Porque você tem um extrato da sociedade que é machista, misógina, que está punindo as mulheres por serem mulheres. Só se muda isso, de forma profunda, com educação. É preciso ter o mesmo discurso na escola, na família, na comunidade, na mídia, ressaltando o valor de todas as vidas humanas, do respeito à mulher e à diversidade.

JORNAL DO COMMERCIO - Na contramão dessa urgência, há uma pauta conservadora que tem se imposto nos debates nacionais. Como garantir que a discussão de gênero chegue, por exemplo, à escola?

NADINE GASMAN - O ponto chave é informação. O trabalho que vocês estão fazendo em Pernambuco, com este projeto, seguindo os casos, é fundamental. Porque sai dos números e conta as histórias. Mostra o rosto, a luta por Justiça e isso força a sociedade a se perguntar: como podemos prevenir essas mortes? Ter informação sobre a violência doméstica, estar junto com as mulheres, chamar a polícia, levar ao hospital, tudo isso vai construindo uma postura que ajuda a prevenir o feminicídio. Essa discussão é especialmente importante este ano, quando estamos comemorando os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é um marco civilizatório da humanidade, para reafirmar que todos somos iguais. Não importa sexo, raça, classe social.

Nadine Gasman, porta-voz da ONU Mulheres no Brasil

O ponto chave é informação. O trabalho que vocês estão fazendo em Pernambuco, com este projeto, seguindo os casos, é fundamental. Porque sai dos números e conta as histórias. Mostra o rosto, a luta por Justiça e isso força a sociedade a se perguntar: como podemos prevenir essas mortes?"

Nadine Gasman,
porta-voz da ONU Mulheres no Brasil

JC - Mostrar que existe um padrão de comportamento nos crimes de gêneros, tanto de agressores quanto das vítimas, ajuda a desconstruir o discurso de setores mais conservadores de que há um exagero quando se fala em feminicídio?

NADINE - Isso tem um impacto muito grande. Porque você está mostrando as consequências de uma realidade que existe nas famílias, na sociedade. Esse padrão mostra que o problema atinge a todas, independentemente de região e classe social. O menosprezo, o ódio, a posse, é disso que precisamos falar. Quando você mostra isso, não há outra saída senão a prevenção.

JC - O tempo todo dizemos às mulheres: denunciem. Mas a fragilidade da rede de assistência ainda é um grande obstáculo para garantir a proteção dessa mulher. Que estratégias mais contundentes precisamos adotar para pressionar a melhoria dessa rede?

NADINE - A gente tem que insistir na denúncia sempre. E, em outra frente, cobrar a melhoria do serviço. Essa é uma luta diária. Aumentar a demanda também é uma forma de exigir mais qualidade no atendimento. O Estado tem que fazer a sua parte, ter políticas que garantam o acolhimento dessa mulher. Quantidade e qualidade precisam caminhar juntos.

JC - Os municípios estão fazendo a sua parte, no que diz respeito ao enfrentamento à violência contra a mulher? Ou ainda transferem essa responsabilidade para o Estado?

NADINE - As realidades nesse Brasil gigantesco são muito diferentes. Dependendo do município, a resposta é sim. Mas, em geral, é preciso muito mais investimento nas ações municipais, que atendem a mulher diretamente onde ela mora e sofre a agressão. Para isso, ainda precisamos de muito mais engajamento por parte dos gestores municipais.

JC - Há um padrão no comportamento dos agressores. Não só em relação ao machismo, mas também nas estratégias de manter a mulher presa às relações abusivas. Estamos dando a devida atenção a esses agressores? Diante de tantos desafios, essa deveria ser uma prioridade?

NADINE - Temos que trabalhar com os agressores, com certeza. Especialmente o tema das masculinidades. Quando a gente está falando de prevenção, está tratando também de falar com os homens sobre a igualdade de gênero. Isso já acontece no ambiente judicial, no que diz respeito à punição. Mas o mais importante realmente é levar essa conversa para as escolas, para a mídia, colocar em evidência imagens diferentes, de homens que são solidários. Mudar a cultura que acha que os homens têm que ser sempre fortes, machos.

JC - A ONU Mulheres tem um trabalho pioneiro em relação à adoção do protocolo do feminicídio nos Estados brasileiros*. Em que medida o protocolo vai ajudar a reduzir a subnotificação dos casos que ainda ocorre de forma tão acentuada?

NADINE - Não temos uma investigação como teríamos que ter. Todo o assassinato de mulher deveria ter como motivação inicial o feminicídio. Porque é fundamental que toda a investigação considere as características do crime com uma perspectiva de gênero. Isso faz com que o olhar do investigador seja muito diferente do que se você já nomear como um homicídio simples. O protocolo de investigação, processamento e julgamento de feminicídio traz essa orientação. Então, deveria-se investigar o caso como feminicídio desde o primeiro momento. E, quando a investigação apontasse para outra motivação, aí, sim, o crime de gênero seria descartado.

JC - Justamente o contrário do que é feito hoje...

NADINE - Exatamente. Por isso é tão importante a adoção do protocolo por parte dos Estados e municípios. Ele traz uma experiência mundial sobre o tema, de como fazer a investigação sob essa perspectiva e de aprimorar as técnicas corretas, necessárias nesse tipo de situação. E nada impede que, na ausência de provas que confirmem o feminicídio, a motivação seja modificada. Nós temos falado sobre isso com juízes, promotores, procuradores, defensores públicos. Porque se você não entra com a perspectiva de que aquele assassinato foi motivado por misoginia, ódio, posse, com as características de crime de gênero, você pode deixar de buscar provas que são muito importantes.


* Na terça-feira (28), será lançado o Protocolo de Feminicídio de Pernambuco. Com isso, o Estado começa a aderir às diretrizes do Modelo Latino-Americano de Investigação de Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero.



Infográfico: Os homicídios de mulheres em Pernambuco nos últimos anos. Os casos de feminicídio só começaram a ser contabilizados no Estado a partir de 2016. Em 2016 foram 112 Feminicídios | Em 2017 foram 76 Feminicídios | Em 2018 foram 43 Feminicídios

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