A impunidade que mata as mulheres

Publicado em 29/12/2019

CIARA CARVALHO
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O que era ruim ficou ainda pior. Porque o passar do tempo só faz aumentar a cruel sensação de impunidade. Os números são vergonhosos. Em 2018, 241 mulheres foram assassinadas em Pernambuco. Nesse mesmo ano, apenas quatro homicídios foram julgados. Não representavam nem 2% dos casos. Mais um ano e 2019 se encerra com uma estatística igualmente insignificante. Apenas oito assassinatos foram submetidos a julgamento ao longo dos 12 últimos meses. Dois anos se foram e tudo o que se tem a mostrar são desconcertantes 12 casos em que a Justiça efetivamente foi feita. Na média dos anos, não dá nem um julgamento por mês. A nova atualização do projeto #UmaPorUma, que contabilizou todos os homicídios de mulheres ocorridos em Pernambuco em 2018, expõe as feridas de um sistema que falha na hora de condenar. Mas não é só a impunidade que revolta. Diante da ausência de resposta concreta do Estado em punir quem tirou a vida de mais de duas centenas de mulheres, o recado é claro. Vira um estímulo à reincidência.

No esforço não só de contar os assassinatos, mas, sobretudo, de compreender as causas e consequências dessa matança quase diária, um coletivo de jornalistas mulheres do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação (SJCC) está monitorando, passo a passo, o andamento do processo penal que investiga a morte de cada uma das vítimas. Desde a fase policial até o julgamento. Nesse desafio, fica evidente o quanto a inércia do aparelho repressor e de Justiça termina favorecendo quem deveria estar sentado no banco dos réus. Mesmo os acusados que chegam a ser presos enxergam na demora para o desfecho judicial dos casos uma desculpa para pedirem (e conseguirem) a liberdade.

A história de Maria Jacqueline da Silva é exemplar. Nua, amarrada a uma árvore pelos pés e pelas mãos e abandonada num matagal perto de casa. Foi assim que a jovem de 19 anos foi encontrada no 1º de junho de 2018, em Garanhuns, no Agreste do Estado, após passar 72 horas desaparecida. O responsável pelo crime chegou a participar das buscas pelo corpo. O vigilante Marcelo José Bezerra da Silva, 28, era vizinho da vítima e confessou o assassinato. Alegou que os dois tinham um caso extraconjugal (vítima e assassino eram casados) e a jovem o teria pressionado a abandonar a esposa. De Jacqueline, além da vida, foi tirado o direito de contar a sua própria história. Passado mais de um ano do feminicídio, o assassino confesso de Jacqueline teve a prisão preventiva revogada, em setembro deste ano. Marcelo foi colocado em liberdade, apesar do crime bárbaro e covarde que cometeu.

Dos 241 assassinatos, cerca de 25% sequer tiveram resposta da polícia. São inquéritos que continuam em aberto, uma parte deles inclusive sem autoria identificada. Praticamente todas as investigações sem solução na fase policial envolvem situações que apresentam alguma relação direta ou indireta com o tráfico de drogas, além de circunstâncias em que o medo de sofrer represálias, a falta de testemunhas e de indícios na cena do crime dificultam a investigação. É o caso de Rejane Pereira da Silva, 32 anos, assassinada em uma lanchonete que funcionava no térreo da casa em que morava, no centro de Angelim, no Agreste do Estado. O crime aconteceu no dia 3 de junho de 2018 e até hoje não se sabe quem foi o autor dos disparos nem a motivação do homicídio.

Para a co-fundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha, Regina Célia Barbosa, a baixíssima efetividade dos julgamentos vulnerabiliza e compromete a eficácia da lei que protege as mulheres. “Essa é uma conta que precisa ser dividida com todos os operadores do direito. Desde a polícia, passando pelo Ministério Público até o Judiciário. A morosidade no esclarecimento dos casos provoca uma onda de impunidade que vai bater na porta de todas as mulheres. Seja porque o agressor revitimiza a mulher agredida (nos casos em que ela escapa com vida) ou porque ele vai encontrar outras vítimas para praticar novos abusos”, avalia.

E nas estatísticas de 2018 é justamente a condição de gênero, aquela em que a vítima é morta simplesmente por ser mulher, a maior causa de assassinatos de mulheres em Pernambuco. Mais de um terço dos casos (85) foi motivado pelo crime de posse. O percentual é o somatório dos indiciamentos feitos pela Polícia Civil (após a conclusão do inquérito) mais as denúncias oferecidas à Justiça pelo Ministério Público de Pernambuco. E o número pode ser ainda maior. Já que a qualificadora do feminicídio pode vir a constar nos inquéritos que ainda estão sendo investigados pela polícia.

Ciente da gravidade que é deixar impune os autores, sobretudo, de feminicídios, o juiz Abner Apolinário da Silva é uma das vozes que cobra do próprio Judiciário maior celeridade no julgamento de assassinatos de mulheres. É dele, inclusive, a sentença que condenou a 24 anos de reclusão Carlos Filipe França pela morte de Williane Giovana Silva de Oliveira, 18, no dia 13 de maio de 2018, em pleno Dia das Mães. A jovem foi assassinada pelo companheiro e pai do filho do casal. Diz o contundente texto da sentença: “Achou pouco matá-la. Isso não aplacaria seu desejo bestial de machista incontrolável. Foi assim que jogou o corpo da morta barreira abaixo. O modo operacional utilizado para obter o êxito de morte merece expressivo relevo. O réu quis infligir a inditosa vítima momento de terror insuportável. O Estado-juiz não pode dar de ombros, desdenhar ou fazer pouco caso de condutas insuportavelmente abomináveis.”

O julgamento de Williane foi um dos oito realizados ao longo de 2019. Deveria ser regra. Mas ainda é uma incômoda exceção.

COBRANÇA Regina Célia diz que impunidade compromete eficácia da lei que protege as mulheres

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Feminicídio também nas relações homossexuais

CIARA CARVALHO
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Com o acompanhamento feito pelo projeto #UmaPorUma, o número de feminicídios registrados em Pernambuco em 2018 aumentou. Até o início deste ano, eram 83 casos contabilizados. Mas, diante da chegada de novos inquéritos ao Ministério Público e ao Judiciário, houve mudanças nas motivações de quatro assassinatos. Três passaram a ser considerados crime de gênero e um perdeu a qualificadora. No somatório final, o atual número registrado é de 85 feminicídios ocorridos no ano passado. Dois casos em particular chamam atenção: a morte de mulheres cujas acusadas do crime são as próprias companheiras. Pelas condições dos assassinatos, claramente motivados por uma relação de posse, o entendimento tanto da promotoria quanto da Justiça foi o de que não importa se o agressor é homem ou mulher. Se a morte ocorre pela condição de gênero da vítima não há outra forma de qualificar esse crime. É feminicídio.

Foi o que constatou a promotora Érika Sampaio Kraychete ao se deparar com o inquérito que investigou a morte de Maria Luiza da Silva, 39 anos. Para a polícia a motivação foi “embriaguez”. Mas o fato de a vítima ter sido assassinada pela companheira, com quem mantinha uma relação homoafetiva há cinco anos, foi determinante para que o Ministério Público enxergasse outra motivação. As duas mulheres tinham constantes desentendimentos por ciúmes, fato ressaltado pela própria investigação policial. “Apesar de a legislação penal permitir a figura do feminicídio homoafetivo, que ocorre quando uma mulher mata a outra no contexto de violência doméstica e familiar, tal crime não é de ocorrência comum”, reconhece a promotora. Mas, no entendimento da representante do Ministério Público, o sexo do agressor não deve ser determinante na hora de incluir a qualificadora. “Não há diferença jurídica se o crime foi praticado por homem ou por mulher no âmbito de uma relação homoafetiva, configurando em ambos as situações de um crime hediondo, com a pena de 12 a 30 anos de reclusão”, defende.

Avaliação semelhante teve a juíza Mirna dos Anjos Tenório. Coube à magistrada incluir a qualificadora já na fase de pronúncia do processo que apura o assassinato de Rayanne Maria dos Santos, 20 anos. A jovem foi brutalmente espancada pela ex-companheira, que não se conformava com o fim do relacionamento amoroso. No processo, a juíza afirma que “a denúncia ‘expressamente’ narrou a existência de uma relação íntima de afeto entre a acusada Ana Gleice Silva de Sá e a vítima, contexto fático no qual esta última foi morta, o que revela ter sido o delito praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino”.

No movimento contrário, o assassinato de Maria Vanessa Silva Barbosa, 23, apontado pela polícia, Ministério Público e pela própria Justiça (na fase de pronúncia do acusado) como feminicídio, terminou perdendo a qualificadora no momento mais decisivo: a hora da condenação. A jovem foi assassinada a facadas pelo homem com quem havia acertado um encontro sexual. Segundo apontou a investigação da polícia, o casal havia combinado o valor do programa em R$ 30, mas, na hora do pagamento, Vanessa quis receber R$ 50. O homem disse que não ia pagar, agrediu a moça e depois a esfaqueou. Vizinhos afirmaram que ouviram gritos da mulher pedindo para não ser furada. O corpo de jurados reconheceu a autoria do crime e condenou Manoel Eriberto Cordeiro da Silva a 10 anos de prisão. Mas não enxergaram que a mulher foi vítima de feminicídio. O réu terminou condenado por um homicídio simples.

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  •   Júri Popular
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