241 mortes e apenas 4 homicídios julgados

Publicado em 3/2/2019

CIARA CARVALHO
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A impunidade é a maior de todas as dores. E a principal marca do assassinato de mulheres em Pernambuco. Nas primeiras horas de 2018, Elizabete de Lima, 36 anos, perdia a filha morta barbaramente a golpes de faca pelo namorado. Sibelly Carla de Lima Silva tinha apenas 14 anos. Foi a primeira mulher assassinada em Pernambuco e a primeira vítima de feminicídio do ano que, então, começava. 2018 se encerrou sem que a família de Sibelly visse a Justiça ser feita. O acusado, preso dias depois, tentou até se aproveitar da demora no andamento do processo. Pediu ao Judiciário para ser solto, alegando “excesso de prazo para formação da culpa”. A defesa foi direto ao ponto: “O réu se encontra preso há cerca de 11 meses sem que a fase de instrução tenha sido encerrada”. O pedido foi negado. Mas a resposta para os familiares da adolescente ainda não veio. Nem para o assassinato de Sibelly nem para o de outras 236 mulheres mortas no Estado no ano passado. A estatística é estarrecedora: dos 241 crimes contabilizados pelo Projeto #UmaPorUma, ao longo de 2018, apenas quatro homicídios tiveram um desfecho, com a condenação dos acusados. Quatro julgamentos. Não chega a 2% dos casos.

Diante do desafio de compreender por que e como as mulheres estão morrendo em Pernambuco, o coletivo de jornalistas do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação à frente do #UmaPorUma seguiu a trilha de cada assassinato. Durante um ano, acompanhou a investigação de todos os homicídios, cobrando da polícia não só a identificação de quem as matou, como a motivação do crime, a prisão e a punição dos assassinos. Quase um terço dos casos (73) permanece com os inquéritos em aberto. A maior parte das investigações sem solução na fase policial envolve situações que apresentam alguma relação direta ou indireta com o tráfico de drogas, além de circunstâncias em que o medo de sofrer represálias, a falta de testemunhas e de indícios na cena do crime dificultam a investigação.

Mas não é esse o padrão de morte de mulheres em Pernambuco. O balanço final do levantamento revela que o assassinato determinado pela condição de gênero é, de longe, o maior desafio dos órgãos de segurança e Justiça do Estado para deter a morte de mulheres. Porque vai além da violência urbana. É crime de posse. O recado é claro: não basta matar. É preciso humilhar e subjugar a mulher, destruindo o seu corpo, na maioria das vezes, de forma brutal.

Entre os crimes com motivação previamente definida, o feminicídio se consolidou como a principal causa de assassinatos no Estado para as vítimas do sexo feminino em 2018. Foram 83 casos registrados, o que representa 34% do total de homicídios contabilizados. O percentual é o somatório dos indiciamentos feitos pela Polícia Civil (após a conclusão do inquérito) mais as denúncias oferecidas à Justiça pelo Ministério Público de Pernambuco. E o número pode ser ainda maior. Já que em 20% dos assassinatos sequer a motivação dos crimes foi esclarecida pela polícia.

A face cruel da misoginia chamou a atenção do juiz Abner Apolinário da Silva. Na sentença que condenou a 23 anos de prisão o assassino de Ivoneide Pereira das Montanhas, 50 anos, um dos quatro homicídios de 2018 que tiveram conclusão na Justiça, o magistrado foi categórico: “O crime contra a vida da mulher, pelo fato de ser do sexo feminino, é ‘cultura’ que dilacera direitos, reduz a mulher a um nada humano, coisificando-a como troféu abominável do machismo.” Ivoneide foi assassinada no Recife, após ter relações sexuais com o agressor. Vítima e assassino eram moradores de rua. Imagens de câmaras mostraram que, após o sexo, o acusado começou a agredi-la. Quando a mulher já estava caída, o criminoso usou uma pedra para terminar de matá-la.

O caso de Ivoneide não escancara apenas a letalidade do machismo. É também exemplar para expor um dos maiores entraves no enfrentamento desse tipo de violência. A condenação do assassino da moradora de rua pelo crime de feminicídio só foi possível porque o Ministério Público mudou o entendimento do inquérito. A conclusão da investigação policial tinha apontado como motivação do assassinato uma discussão. Como uma outra qualquer. Não se trata de um caso isolado. A subjetividade que ainda prevalece nas investigações de assassinatos envolvendo vítimas mulheres pode ser medida de forma concreta. Seus efeitos nocivos também.

O monitoramento feito pelo projeto #UmaPorUma contabilizou oito casos de feminicídio a mais do que o número oficial da Secretaria de Defesa Social, que encerrou o ano com 75 registros. Em todos os casos com motivação distinta, coube ao Ministério Público incluir o feminicídio em inquéritos recebidos da Polícia Civil nos quais a qualificadora tinha ficado de fora. A diferença entre as estatísticas ocorre justamente porque cada integrante do sistema de segurança – Polícia Civil, Ministério Público e Judiciário – tem autonomia e competência institucional para decidir pela inclusão ou não da qualificadora de feminicídio. Na prática, o que termina valendo é o entendimento do delegado, do promotor e do juiz.

O assassinato de Diana Regis Barbosa Ferreira, 50, é outro que coloca o dedo na ferida. Quando a polícia entrou na pequena casa sem número na Comunidade do Chié, bairro do Ipsep, Zona Sul do Recife, encontrou o corpo da mulher de joelhos, vestido apenas de calcinha e amarrado pelo pescoço a um lençol preso ao telhado. Com uma investigação tumultuada, o inquérito já passou pelas mãos de três delegados e teve a investigação recusada pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE). Após ser descartada a hipótese de suicídio, a principal linha de apuração passou a ser feminicídio. Com a mudança de delegado, o inquérito terminou sendo encerrado como homicídio (sem a qualificadora), embora a explicação dada pela própria polícia fosse claramente a descrição de um crime de gênero: “(O suspeito) não queria que ela se envolvesse com outro homem. Não foi porque ela era mulher e assim quis rebaixá-la, dominá-la, acabar com sua vida. A motivação ‘ciúmes’ pode se encaixar em outra qualificadora de homicídio, a exemplo do motivo fútil”, afirmou, na época, a delegada responsável pela conclusão do inquérito. Agora, o MPPE devolveu o caso à polícia, solicitando mais investigações e provas conclusivas.

Dez meses após o assassinato, a morte de Diana segue sem solução. Durante esses dez meses, o projeto acompanhou as idas e vindas do inquérito. Vai continuar acompanhando. Até que a morte de Diana tenha um desfecho e o assassino seja preso e condenado. Não só o processo dela. Mas o de todas as mulheres assassinadas no ano passado. Uma por uma. Conclusão do inquérito pela Políca Civil, denúncia do Ministério Público, julgamento pela Justiça. Com a finalização desta etapa do projeto, o que se encerra apenas é a contagem dos novos homicídios ocorridos este ano. 2018 ainda tem muito a ensinar e a jogar luzes sobre a matança de mulheres em Pernambuco.

SEM RESPOSTA As mortes de Gilda, Élida, Marcela e Luana são parte dos 30% dos casos que ficaram sem solução em 2018 no Estado

SEM RESPOSTA As mortes de Gilda, Élida, Marcela e Luana são parte dos 30% dos casos que ficaram sem solução em 2018 no Estado

Mapa do feminicídio expõe uma matança quase diária

Publicado em 3/2/2019

CIARA CARVALHO
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Onde elas morrem? Como elas morrem? Por que elas morrem? No esforço de traçar o perfil de vítimas e agressores, retratar a cena do crime, resgatar o histórico de violência doméstica e quantificar a incidência dos casos, o projeto #UmaPorUma elaborou um formulário com mais de 80 questões que envolvem a ambiência da morte de mulheres no Estado. O resultado do trabalho de um ano de investigação produziu o mapa do feminicídio em Pernambuco. Pintá-lo de vermelho, pontuando cada um dos 241 assassinatos praticados no ano passado, ajuda a dimensionar o tamanho do problema e auxilia na busca de soluções. A fotografia revela que a matança é quase diária e se espalha por praticamente todas as cidades do Estado, ganhando contornos mais cruéis no interior, onde o machismo se revela de forma ainda mais violenta.

A Região Metropolitana do Recife concentra o maior número de assassinatos de mulheres no Estado. Foram 120 registros, o que representa praticamente 50% do total de homicídios. A capital é a recordista de mortes, com 37 casos. No interior, o Agreste é o que contabiliza mais assassinatos, com 46 ocorrências, seguido pela Zona da Mata (44) e Sertão (31). Quando o recorte diz respeito apenas aos feminicídios, o retrato não é muito diferente. Foi no Grande Recife que ocorreu a maior parte desse tipo de crime: 41% dos 83 registrados no Estado. Desta vez, o Sertão foi onde mais se matou mulheres pela condição de gênero, com 24% dos casos. Na sequência, o Agreste, com 20,5%, e a Zona da Mata, 14,5% dos registros.

É, sobretudo, pelas mãos dos companheiros e ex-companheiros que elas estão sendo mortas. Quando a motivação do crime é feminicídio, o percentual chega a quase 80% dos casos. Crimes que acontecem dentro de casa, onde elas deveriam estar mais seguras. Quase 60% dos assassinatos aconteceram na residência da própria vítima. E, não raras vezes, na frente dos filhos. As mulheres não tiveram a chance sequer de pedir socorro.

Em um dos crimes mais chocantes acompanhados pelo projeto, o feminicídio não fez só uma vítima. Mas duas. Mãe e filha. Pela brecha do barraco da chamada Favela do Papelão, comunidade pobre erguida em Jardim Piedade, Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife, foi possível ver os corpos. Jaqueline Santos de Santana, 26 anos, caída sobre a cama, e a mãe, Ednalva Santos de Santana, 48, ainda sentada no sofá.

Jaqueline tinha dois tiros na cabeça. O rosto no chão, num claro sinal de que agonizou antes da morte. O filho de apenas quatro anos dormia ao seu lado no momento do crime e viu a mãe e a avó serem executadas. Foi a criança, inclusive, quem primeiro denunciou o suspeito do crime, o ex-companheiro de Jaqueline, José Riberio Cavalcante de Carvalho, um mototaxista que a matou por não aceitar o fim do relacionamento, terminado 15 dias antes das mortes.

Jaqueline foi assassinada porque rejeitou o namorado, com quem teve um relacionamento de apenas seis meses. Uma relação, segundo familiares, de assédio e ameaças, apesar do pouco tempo. “Não restam dúvidas de que foi ele. A primeira coisa que meu sobrinho afirmou quando o tiramos do colo da minha irmã morta foi que o tio – como ele chamava o namorado da mãe – tinha matado mainha e voinha. Ele disse que o tio tinha dado um choque nelas. A gente acredita que deve ter visto a mãe e a avó agonizando e achou que elas tinham levado um choque”, conta a vendedora Norma Lúcia Josefa de Assis, irmã de Ednalva e tia de Jaqueline.

Por ser um crime de proximidade, em que o assassino muitas vezes já carrega um histórico de agressões e ameaças, o feminicídio termina tendo uma taxa de resolução por parte da polícia mais alta do que a dos assassinatos de mulheres em geral. Dos 83 crimes de gênero praticados no ano passado, 94% tiveram o caso esclarecido e o inquérito concluído. O percentual, no entanto, nem sempre representa um conforto ou uma resposta para a família das vítimas.

Edilene Maria Ramos, 31, mãe de três filhos, foi espancada e morta depois de uma briga com o companheiro, Tiago Walterson Santana, 34, com quem vivia há pouco mais de dois anos. Ela morava num primeiro andar, sobre a residência da avó, a quem considerava mãe, no bairro de Joana Bezerra, área central do Recife. À noite, os parentes começaram a ouvir as brigas. De manhã, quando foram ver, o rosto de Edilene estava lavado de sangue. A polícia decretou a prisão preventiva do acusado, mas ele está foragido. Para a família, a sensação de impunidade é tão gritante quanto a saudade. “Não me conformo nunca, nunca. Eu vou ter ainda um pouquinho de paz no dia que disserem, assim: ‘o Tiago foi preso’”, desabafou a avó de Edilene, Maria Helena da Silva, 78. Mas esse dia ainda não chegou.

A história de todas nós

Publicado em 3/2/2019

CIARA CARVALHO & JULLIANA DE MELO

Foi um processo transformador. Fruto de um inconformismo urgente. E da necessidade de dizer basta. Parem de nos matar. Não. Não é natural ela morrer porque quer ser livre. Porque não ama mais. Ou porque ama demais. Não. Ele não tem o direito de decidir sobre a vida dela. Sobre a morte dela. Maria, Jéssica, Paula, Rafaela, Roseane. Foram elas. Mas poderia ter sido qualquer uma de nós. Ao longo de um ano, nos colocamos no lugar delas o tempo todo. Até porque, de certa forma, estamos mesmo nesse lugar. Não fisicamente. No corpo destruído, violado, abandonado numa poça de sangue, na cena do crime. Essa dor é delas. Dos filhos dela. Mas o sentimento de vulnerabilidade é de todas. Porque todas, pela condição feminina, podem ser a próxima.

A sensação de frustração e impotência é real. Nos acompanhou o ano inteiro. Por saber que mesmo a mulher denunciando – passo fundamental para interromper o ciclo da violência doméstica – ela pode morrer. E morre. Por ver falhas na rede de proteção, apontar os problemas, mas saber que a solução não está com a gente. E, ao mesmo tempo, está. O #UmaPorUma é a prova de que nada é impossível quando nós, mulheres, decidimos não naturalizar a barbárie, o machismo, a misoginia. Não silenciar é uma forma de continuarmos vivas.

Mas, sim. O ano de 2018 foi de luto. As 241 famílias que perderam suas mulheres para a violência em Pernambuco vão, caminho tortuoso e demorado, lutar agora por justiça. Dessas vítimas, ao menos 83 receberam o trágico selo do feminicídio ao lado do rosto que enquadrava cada história contada. Contar foi verbo imperioso desde o princípio. Mas não contar por contar. Não só quantificar. Mas contar quem eram elas. Era preciso enxergar essas mulheres. Ver mais do que corpos pobres, negros, alguns descartados como um pedaço de carne, sem a dignidade sequer de uma identificação.

O exercício de olhar nos guiou para além dos números. O empenho de ir atrás, saber quem eram, como viviam, o que gostavam de fazer, com o que sonhavam, nos aproximou. Elas têm rostos e tinham uma vida. Tinham filhos, amigos, colegas de trabalho, animais de estimação. Algumas se arrumaram pra sair sem saber que aquela seria a sua última noite de vida. Outras saíram de casa pra comprar comida, trabalhar, dar entrada nos documentos pra começar uma faculdade. O fato é que nenhuma delas voltou. E nós olhamos pra cada uma dessas histórias. Para ter certeza de que elas vão ser lembradas. E mais: a morte delas não foi em vão.

Juntas, aprendemos sobre essa tal sororidade e nos reconhecemos como coletivo. Não estivemos sozinhas. As 31 mulheres jornalistas que fizeram esse projeto existir se juntaram a outros braços fortes do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação. A todos eles, nosso mais sincero obrigada. A missão diária, que começou com o desafio de criar e alimentar um banco de dados digital inédito sobre o assunto, chega oficialmente ao fim. Mas, na verdade, é apenas um começo. Sigamos, contando. É história de nós.

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