Menos indiferença e mais proteção
Publicado em 3/2/2019
ADRIANA GUARDA & MONA LISA DOURADO
Nas paredes, frases encorajadoras e pinturas do artista Rafa Mattos (conhecido por seu regador com a frase “Plante amor, colha o bem”) tentam espelhar o clima do lugar. Lá dentro, como gostam de dizer os gestores, o Centro de Atenção à Mulher Vítima de Violência – Sony Santos “não é apenas um espaço de atendimento. É um ambiente de acolhimento, abraço, encorajamento para buscar uma nova forma de vida”. Inaugurado há dois anos e meio, num anexo do Hospital da Mulher, no bairro do Curado, no Recife, o espaço, que carrega o nome de uma feminista negra, é referência no Brasil por oferecer atendimento integrado à mulher em situação de violência, desde os cuidados com a saúde, passando pelo registro do Boletim de Ocorrência e o exame de corpo de delito. É o equipamento ideal de acolhimento, mas é o único a oferecer essa estrutura completa e não tem como atender a toda a demanda do Estado.
A Lei Maria da Penha orienta União, Estados e Municípios a se prepararem para prestar a assistência necessária às mulheres em situação de violência doméstica. Nos artigos 34 e 35 está prevista a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, assim como de centros de atendimento integral e multidisciplinar, casas-abrigos, delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher. Em paralelo, determina a elaboração de programas e campanhas de enfrentamento à violência e centros de educação e de reabilitação para os agressores.
Embora ainda esteja longe de ser a ideal, a rede de proteção formada em Pernambuco conta com todos os equipamentos previstos na lei e vai além. Desde 2007, o Estado conta com uma Secretaria da Mulher e novos serviços, como o programa 190 Mulher, que fornece atendimento policial prioritário no caso de agressão, a Patrulha Maria da Penha, que faz visitas domiciliares para conferir se o agressor está cumprindo as medidas protetivas, e o monitoramento eletrônico do acusado para os casos em que há medida cautelar. “Também somos o único Estado em que as casas-abrigos recebem não só as mulheres como os filhos”, conta a Diretora de Enfrentamento da Violência de Gênero Contra a Mulher da Secretaria da Mulher de Pernambuco, Bianca Rocha, referindo-se aos espaços mantidos em locais sigilosos para receber mulheres sob risco de morte. Somente em 2018, 132 vítimas passaram por uma das quatro casas-abrigo disponibilizadas pelo Estado, 19 a mais que em 2017.
Praticamente todos os demais serviços também registraram aumento no número de atendimentos, o que reflete o crescimento de 19,3% (de 33.493 para 39.945) no registro de boletins de ocorrência (BOs) em delegacias por violência doméstica entre 2017 e 2018. A secretária da Mulher de Pernambuco, Silvia Cordeiro, credita esse aumento à ampliação do conhecimento sobre a Lei Maria da Penha e sobre os serviços de proteção à mulher. “Cresce o número de mulheres que sabem que podem pedir ajuda às instituições. Precisamos que muitas mais cheguem a essa rede, porque, a partir desse momento, já existe um fator de proteção”, acredita.
A secretária admite, no entanto, que há um déficit significativo de equipamentos em algumas regiões, como a Zona da Mata Sul, onde é crescente o número de denúncias e de feminicídios. “Trata-se de uma rede em construção”, diz Silvia, apontando que em 2019 a Secretaria pretende mapear as tentativas de assassinatos para buscar tornar a prevenção mais eficaz.
Para a diretora executiva do Instituto Maria da Penha, Regina Célia Barbosa, apesar do “esforço e dedicação” dos profissionais, não há priorização de recursos para os equipamentos da rede de proteção à mulher, em especial para os centros de referência, onde há atendimento multidisciplinar. Atualmente, eles só estão disponíveis em 37 municípios entre os 184 do Estado, e em apenas 12 contam com todos os serviços. “O número e a acessibilidade aos centros precisa melhorar e muito. A demanda diária é muito maior do que a disponibilidade. Na Região Metropolitana só há um no Recife, outro em Olinda, um em Jaboatão, já fragilizado, e um no Cabo. Também é preciso que eles estejam mais próximos das áreas de periferia.” Outro modelo que precisa ser replicado, diz Regina, é o do Hospital da Mulher, que funciona de modo “excelente, mas é único”.
A coordenadora do Sony Santos, no Hospital da Mulher, Sandra Leite, diz que 746 mulheres já foram acompanhadas pelo centro. “Contamos com uma equipe multidisciplinar integrada por médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social e médico legista. Esse é um diferencial para que a mulher não desista do atendimento. Outra questão importante é que funcionamos 24 horas nos 7 dias da semana e atendemos a mulheres não só do Recife, mas de todo o Estado. Estamos sempre de portas abertas”, afirma. A gestora também explica que fazer a denúncia não é requisito para o atendimento e destaca que apenas 20% denunciam seus companheiros. “Existe uma conjuntura social e econômica que inibe essas denúncias, mas preparamos as mulheres para que elas possam quebrar esse ciclo de alguma forma, melhorando sua autoestima e recebendo acompanhamento psicológico”, complementa.
A especialista do Instituto Maria da Penha chama a atenção para a necessidade de formação contínua dos profissionais que atendem à mulher, de policiais e escrivães a agentes de saúde e juízes. “Se houver alguma falha nesse processo, como um encaminhamento incorreto ou a falta de celeridade na concessão e fiscalização do cumprimento das medidas protetivas, as mulheres deixam de se sentir seguras”, atesta. Foi o que aconteceu com Michele (nome fictício), que há sete meses tenta se proteger das ameaças de morte do ex-companheiro com quem tem duas filhas de 7 e 4 anos, fruto de nove anos de relacionamento. Moradora de Olinda, ela conta que na primeira vez em que acionou a polícia, quando o agressor tentou esganá-la, não foi acolhida como esperava. “O agente me perguntou se eu tinha certeza de que queria fazer a denúncia e depois me desejou boa sorte de forma irônica.” De lá para cá, Michele registrou outros três BOs, um deles após uma agressão que lhe custou uma cirurgia no dedo. “Pedi medida protetiva, mas ele nunca cumpriu, continuou indo à minha casa e até hoje envia mensagens me ameaçando. Nunca foi intimado, nunca viu um delegado nem um juiz”, queixa-se Michele. Somente quando foi encaminhada à Secretaria da Mulher, ela diz que recebeu uma alternativa mais efetiva para sua segurança e a dos filhos: o encaminhamento à uma casa-abrigo. Recusou-se, no entanto, a abrir mão da própria vida e esconder-se fora da cidade com as crianças. “Não sou eu a criminosa, não fiz nada errado. Não tenho que ficar presa, ele sim”, enfatiza Michele, que encontrou outro meio de defender-se, contando a sua história à família, amigos, vizinhos e quem mais se disponha a ouvir, na tentativa de responsabilizar, envergonhar e afastar o agressor.
Outra queixa recorrente das mulheres é a demora para receber a concessão da Medida Protetiva. Gestora da Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça de Pernambuco, a desembargadora Daisy Andrade adianta que até o início de março deverá entrar em operação o sistema de informatização das medidas protetivas. “Quando a mulher for atendida na delegacia poderá solicitar a MP e a solicitação já vai cair no sistema do TJPE, evitando o trâmite do papel físico até as varas”, explica. O projeto piloto começa pela Vara especializada em violência contra a mulher do Recife.