Arma dentro de casa encoraja feminicídio

Publicado em 3/2/2019

MARIANA DANTAS
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“Se eu estivesse com a minha arma aqui, agora, daria dois tiros na sua cabeça.” Daniela (nome fictício) ouviu essa frase diversas vezes do ex-marido, durante as brigas que culminavam em agressões físicas. Os socos e chutes que recebeu provocaram a perda da audição em um dos ouvidos, fraturas no braço e quatro dentes quebrados. “Ele tem posse de arma, mas quando casamos pedi para que deixasse na casa do pai dele, pois, com dois filhos do meu primeiro casamento, tinha receio de um acidente com as crianças. Na época, ele ainda não havia demonstrado ser um homem agressivo e atendeu ao meu pedido. Tenho certeza de que se a arma estivesse em casa, estaria morta”, conta a jovem, que está separada do agressor desde abril do ano passado. O medo de Daniela se traduz no dia a dia: no ambiente de violência doméstica, as mulheres poderão ser as principais vítimas de homens armados.

Entidades e instituições que atuam diretamente no combate à violência de gênero defendem que facilitar a aquisição de armas pode contribuir para mais casos de mortes de mulheres no País, principalmente porque a maioria dos feminicídios acontece no ambiente doméstico.

De acordo com o levantamento do #UmaPorUma, das 83 mulheres mortas por crime de gênero, 30% foram assassinadas com arma de fogo. Desse universo, 72% morreram dentro de casa. A gerente de loja Dayanne Joyce Silva Serafim, 25, e as donas de casa Viviane Maria de Santana, 38, e Débora Marcelino Izídio, 25, estão entre as que foram assassinadas a tiros pelos companheiros, sendo dois deles policiais militares e o outro um ex-militar, respectivamente. Nos três casos, os agressores cometeram suicídio após matar as mulheres.

Ignorando as estatísticas da violência de gênero, no último dia 15 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro cumpriu sua promessa de campanha e publicou decreto facilitando o acesso a armamentos. O documento possibilita a posse de arma a maiores de 25 anos, sem antecedentes criminais, que residam em zona rural ou área urbana com taxa de homicídios superior a 10 por 100 mil habitantes. Ou seja, na prática, abarca todos os 26 Estados brasileiros mais o Distrito Federal, com exceção de apenas 23 municípios.

Dez dias após a publicação do decreto, o Instituto Maria da Penha lançou uma campanha de protesto #MinhaArmaÉaPaz nas redes sociais. A Defensoria Pública de São Paulo também reagiu e decidiu distribuir entre os seus defensores um formulário com informações sobre o artigo 22 da Lei Maria da Penha, que prevê como medida protetiva de urgência a suspensão da posse e do porte de arma de agressores que cometeram violência doméstica e familiar.

“Apesar de a Lei Maria da Penha ser conhecida de uma forma geral, a maioria da população desconhece todos os seus artigos, como a medida protetiva que suspende a posse de arma do agressor. Ela pode ser concedida de imediato, assim como a medida que exige o distanciamento da vítima. A nossa intenção é que essa informação chegue às mulheres”, afirma a defensora do Estado de São Paulo Paula Santana Machado. Ela também cobra dos governantes ações concretas para combater a violência de gênero. “O Brasil é o 5º país do mundo no ranking de feminicídio, segundo a ONU. A preocupação do governo deveria ser a de combater esse problema, e não facilitar o acesso a armas, aumentando o risco para as mulheres, mesmo que o agressor não tenha um histórico violento. Sabemos que muitos casos acontecem no calor das discussões entre o casal.”

Em Pernambuco, a Defensoria Pública também vem orientando as mulheres que buscam o órgão. “Quando somos procurados por uma mulher que precisa de ajuda, a primeira pergunta que fazemos é se o agressor possui arma dentro de casa”, explica a defensora Virginia Moury Fernandes, que há nove anos trabalha no atendimento às mulheres vítimas de violência. Ela também argumenta que o fato de saber que o marido tem uma arma em casa pode intimidar a mulher até a pedir socorro. “Ela tem mais medo de denunciar porque acredita que ele pode matá-la quando voltar para casa.”

Sobre o argumento dos que defendem o novo decreto, de que as mulheres também usariam a arma para sua defesa, Virginia Moury discorda. “As mulheres têm uma condição de vulnerabilidade bem maior que a dos homens. O fato de ela possuir uma arma não significa que conseguirá se defender de uma agressão ou ter condições de enfrentar fisicamente o homem. Eu não acredito que a arma irá ajudá-la. Aliás, a flexibilização da posse de arma não é boa para a mulher nem para o homem e pode ter efeitos trágicos para todos.”

“Não há que ceder ao medo

Publicado em 3/2/2019

LUIZA FREITAS
Especial para o JC

Uma mulher nunca está segura. A conclusão assustadora foi a semente do livro Garotas Mortas, da argentina Selva Almada. Um dos destaques da nova literatura latino-americana, Selva falou ao JC sobre feminicídio e empoderamento. Contundente e afiada como a narração dos crimes no livro, a autora acredita que não há outro caminho além do feminismo para cessar o assassinato de mulheres.

JORNAL DO COMMERCIO - Como surgiu a ideia de escrever o livro Garotas mortas?

SELVA ALMADA - O gatilho do livro foi a história de Andrea, uma adolescente assassinada em um povoado vizinho ao que eu vivia quando tinha 13 anos. Essa história causou um profundo impacto em mim e nas garotas da minha idade. Especialmente porque Andrea foi assassinada dentro de casa. Isso quis dizer que o que vivíamos escutando desde pequenas sobre o perigo estava lá fora, que tínhamos que ter cuidado com os estranhos, isso era mentira. A morte de Andrea vinha nos dizer que se éramos mulheres, não haveria nenhum lugar seguro para nós. A este caso se somaram outros dois, o de María Luisa e o de Sarita, todos na mesma década, ocorridos em povoados do interior, não solucionados, casos que nunca tiveram repercussão nacional.

JC - Por que você decidiu se incluir no livro com situações pessoais em que viveu ou presenciou uma violência?

SELVA - Não foi planejado. As passagens pessoais começaram a surgir espontaneamente à medida que escrevia as histórias das três. É claro que nunca me havia acontecido nada próximo da ameaça de um assassinato, não queria me comparar com os acontecimentos terríveis e horrorosos das garotas. Mas também me dei conta que as cenas mais “inofensivas” que vivi eram as que aconteciam a todas as mulheres todos os dias; que essas histórias vão formando uma rede que sustenta todo o resto, que permite que ocorram os feminicídios. Creio que quando entendermos que qualquer uma de nós pode ser assassinada somente por sermos mulheres entenderemos a dimensão da misoginia.

JC - Como foi o processo de investigação e escolha dos casos que seriam abordados no livro?

SELVA - O caso de Andrea eu já conhecia, aos outros cheguei por acaso. Com o de María Luisa me deparei em um jornal que lembrava que havia se passado 25 anos do assassinato dela. Ao de Sarita cheguei perguntando a jornalistas do interior do país por casos de feminicídio que ocorreram na década de 1980. Procurei e entrei em contato com os familiares e amigos das vítimas, entrevistei os juízes que haviam atuado nas causas, fui aos arquivos dos jornais que noticiaram os crimes... Também fiz um trabalho com uma taróloga que me ajudou muito a organizar as histórias, encontrar relações entre elas e a entender por que eu estava obcecada por elas.

SELVA ALMADA

Creio que a única resposta à misoginia é o feminismo. Esse empoderamento provoca uma reação feroz de parte do patriarcado, as mortes se multiplicam e o feminicídio é a forma mais brutal de tentar nos disciplinar novamente."

Selva Almada

JC - Os crimes do livro se passam no período da redemocratização da Argentina, informação que ajuda a situar as histórias no tempo, mas também mostra como as mortes acontecem à parte de tudo. Qual é a influência do cenário político para o assassinato de mulheres?

SELVA - Acredito que o Estado tem responsabilidade direta. No caso dos feminicídios do livro, a Argentina estava voltando à democracia e a polícia continuava tendo os mesmos vícios da ditadura. Lamentavelmente a polícia não mudou muito. Quando María Luisa desapareceu, em 1983, sua família foi registrar o caso e ouviu da polícia: ‘Ela deve ter saído com algum namoradinho’. No último dia 25 encontraram o corpo de uma garota de 13 anos que estava desaparecida há um mês na mesma província da história. Quando a família foi oficializar o sumiço ouviu: ‘Deve ter saído com algum namoradinho’. Me deu calafrios ler exatamente a mesma resposta 36 anos depois! O Estado lava as mãos. E com esta inclinação à direita que têm nossos governos, é claro que o clima político acompanha e promove a misoginia, o desrespeito ao próximo, incluindo as mulheres, os transexuais... também é alto o índice de travesticídios na Argentina.

JC - No Brasil, a classificação de um crime como feminicídio só foi reconhecida em 2015. Como a Justiça argentina trata esse tipo de crime?

SELVA - Em 2012 foi sancionada uma lei exemplar, a lei que prevê prisão perpétua para o feminicida, entre outras coisas. A questão é que são muito poucos os casos em que se aplica essa lei e a maioria dos feminicídios continua a ser julgada como homicídios com agravante de vínculo. Esses casos têm uma pena de 25 anos. Isso quer dizer que às vezes as leis existem, mas não são cumpridas, ou não há profissionais capacitados para aplicá-las ou não há recursos para aplicar o que a lei prevê.

JC - Você tem muitos leitores homens? Como convencer os homens a ler Garotas Mortas?

SELVA - Acredito que a maioria das leitoras seja mulher. Acho que os homens continuam pensando que a misoginia é um problema das mulheres. Não me interessa convencer os homens a nada nem ensinar-lhes nada. Eu tive que aprender sozinha o pouco ou muito que sei e ainda preciso de tempo para continuar aprendendo a desmontar o que a cultura patriarcal fez comigo. Não vou perder tempo educando homens!

JC - Hoje, como você se depara com uma notícia de uma mulher morta?

SELVA - Não me acostumo. É sempre uma tragédia espantosa. Sempre é como se fosse a primeira vez que escuto uma notícia do tipo. Me dá raiva e dor.

JC - Estamos mais perto de parar de matar nossas garotas?

SELVA - Creio que não, mas estamos mais perto de deixar de suportar isso, de permitir. Os movimentos de mulheres, os diversos feminismos, são o único caminho. Acredito que o feminismo (com sua diversidade) é o movimento político, social, cultural e econômico mais importante da Argentina dos últimos 50 anos. E creio que a única resposta à misoginia é o feminismo. Esse empoderamento provoca uma reação feroz de parte do patriarcado, as mortes se multiplicam e o feminicídio é a forma mais brutal de tentar nos disciplinar novamente. Então não há que ceder ao medo, não há que deixar de ir às ruas.

DOR SEM FIM Iraneide perdeu a filha Irlaine, de 10 anos, assassinada pelo padrasto

DOR SEM FIM Iraneide perdeu a filha Irlaine, de 10 anos, assassinada pelo padrasto

Quando os filhos viram alvo

Publicado em 3/2/2019

JULLIANA DE MELO
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A morte em vida. Uma dor imensurável. A face mais cruel de um machismo que violenta e mata não só as mulheres, mas também seus filhos. Muitas vezes, filhos dos próprios agressores, que passam por cima da condição de pai para causar sofrimento a quem um dia foi sua companheira e não quis mais ser. Histórias como a do jovem Diego, da garota Irlaine e da recém-nascida Maria Sofia marcaram o ano de 2018 em Pernambuco, acendendo mais um alerta para danos causados pela violência de gênero.

Era um domingo de manhã, dia 2 de dezembro, quando o sargento da Polícia Militar Moisés de Lima Carvalho atirou contra os dois filhos e matou um deles durante mais uma briga com a esposa na casa da família, no Cordeiro, Zona Oeste do Recife. Diego Lima Carvalho, 24 anos, e Moisés Francisco Carvalho Filho, 27, não aguentavam mais as agressões do pai à mãe, e decidiram que ele não moraria na mesma casa. Foi o suficiente para o sargento, que estava afastado da corporação e fazia tratamento contra o alcoolismo há cerca de um mês, disparar uma pistola .380 contra os rapazes.

Moisés, o mais velho, levou um tiro no braço. Diego foi atingido na região do abdome e não resistiu. Em um discurso momentos antes do sepultamento, no Cemitério de Santo Amaro, área central do Recife, um dos presentes afirmou que Diego morreu lutando pela mãe. “Lutou para tirar a mãe da opressão e pagou por isso”, afirmou. Procurada pela reportagem, a mãe dos jovens se limitou a dizer que só espera justiça de Deus. “Minha vida acabou. Não sei nem como estou falando.”

João Pereira, pai de Maria Irlaine

"Não existe tristeza pior que essa. Os dias passam e a dor só aumenta", lamenta o agricultor João Pereira, pai de Maria Irlaine, assassinada pelo padrasto.

À polícia, o sargento disse que “não tinha intenção” de atirar nos filhos e que disparou “só para assustá-los”. Foi preso em flagrante e teve prisão preventiva decretada, sendo encaminhado ao Centro de Reeducação da Polícia Militar de Pernambuco (Creed), em Abreu e Lima, no Grande Recife. O Tribunal de Justiça recebeu a denúncia do Ministério Público na última quinta-feira (29) e marcou a audiência de instrução e julgamento para 17 de abril. O processo encontra-se na 2ª Vara do Tribunal da Capital.

A família de Maria Irlaine Dantas da Silva, 10 anos, assassinada pelo padrasto no dia 14 de dezembro, não espera justiça. Quer apenas sofrer menos. “Não existe tristeza pior que essa. Os dias passam e a dor só aumenta”, disse o agricultor João Pereira, pai da garota. Foi ele quem achou o corpo da filha em um canavial, no município de Ribeirão, Zona da Mata Sul. Maria Irlaine tinha sido sequestrada há quatro dias por José Carlos da Silva, que a tirou de casa, no Cabo de Santo Agostinho, dizendo que ia levá-la à escola. Ele não aceitava a separação da mãe da menina, Iraneide de Lourdes Dantas de Oliveira, com quem viveu dois anos. Matou Maria Irlaine, depois amarrou uma corda no pescoço e se jogou de uma ponte em Ribeirão. Levou toda uma família junto. “Não consigo dormir à noite, porque fico me lembrando daquela imagem e imaginando o quanto minha filha sofreu”, contou José Carlos.

O juiz Gleydson Lima, titular da 2ª Vara de Crimes contra Criança e Adolescente e diretor do Foro do Recife, chama a atenção para a alienação parental. “A agressão contra a criança para atingir a mãe não se resume apenas à agressão física, pode chegar à morte da criança. A gente tem muitos casos de agressões psicológicas e físicas contra criança para atingir a mãe”, relatou. Quando a violência chega aos filhos, segundo o juiz, muitas mulheres tomam medidas bruscas e rompem a relação. “Outras quando dependem financeiramente costumam se submeter ainda mais à violência.”

Em um desses casos Maria Sofia, acabou morta aos 49 dias de vida. Foi esganada durante o banho pelo pai, o agricultor Josinaldo Luiz da Silva Bernardo, 28 anos. O crime aconteceu no dia 17 de novembro, na comunidade Sítio Jurema, zona rural de Belo Jardim, Agreste pernambucano. À polícia, a mãe da bebê disse que o acusado a espancava com frequência e tinha ciúmes da criança. Ela presenciou a agressão, mas não pôde socorrê-la porque foi ameaçada. Ao constatar que o estado da criança se agravava, ele permitiu que ela fosse levada a uma unidade de saúde. Mas era tarde. Josinaldo Luiz foi autuado em flagrante por homicídio e encaminhado ao Presídio de Pesqueira, no Agreste, onde cumpre prisão preventiva.

Segundo a juíza Fernanda Moura, da 1ª Vara do Tribunal do Júri da Capital, acusados enquadrados por feminicídio, em geral, não têm antecedentes criminais. “Muitas vezes, o alvo do agressor passa a ser os filhos pela relação que a mãe tem com eles. É uma violência que perpassa a relação de pai e filho, e tem uma questão cultural machista.” Para ela, esse tipo de criminalidade é difícil de combater apenas com a condenação dos acusados. “É preciso mudar a visão de mundo da sociedade e o único caminho para isso é a educação.”

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