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41% das mortes de mulheres sem solução

Publicado em 29/07/2018

CIARA CARVALHOo
ciaracalves@gmail.com

Élida Maria dos Santos, 28 anos, foi vista com vida pela última vez no dia 9 de dezembro do ano passado. Circulava pela feira de Aliança, na Zona da Mata do Estado, onde morava. À polícia, testemunhas disseram que ela subiu na garupa de uma motocicleta, conduzida por um homem. Era conhecida na área, porque, às vezes, pedia comida aos feirantes. No dia 5 de janeiro de 2018, os policiais da delegacia da cidade foram chamados para verificar um corpo encontrado no canavial do Engenho Pendência, na zona rural do município. Estava em adiantado estado de decomposição. O corpo era de Élida Maria dos Santos. Passados seis meses do crime, a pergunta “Como Élida morreu e por quê?” continua em aberto. A morte dela e a de outras 51 mulheres assassinadas de janeiro a junho deste ano em Pernambuco ainda esperam uma resposta da polícia.

Nos seis primeiros meses de 2018 já são 127 mulheres vítimas de homicídio no Estado. O balanço do primeiro semestre do projeto multimídia #UmaPorUma revela que, desse total, 41% dos inquéritos policiais não foram concluídos. A maior parte dos casos sem desfecho envolve situações que apresentam alguma relação direta ou indireta com o tráfico de drogas, além de circunstâncias em que o medo de sofrer represálias, a falta de testemunhas e de indícios na cena do crime dificultam a investigação. A boa notícia é que, na outra ponta, a dos inquéritos cujas investigações já foram encerradas (53% dos casos), todos tiveram autoria definida.

Quando o recorte é feito considerando apenas os casos de feminicídio - foram 37 registrados de janeiro a junho - o percentual de inquéritos conclusos sobe para 86%. Os assassinatos com motivação de gênero são mais fáceis de elucidar, principalmente porque o agressor costuma ter uma relação de proximidade. Pior ainda: mora na mesma casa da vítima ou já se relacionou com ela. É justamente esse o perfil de 83% dos suspeitos identificados nos inquéritos de feminicídio registrados este ano.

“Se o crime está relacionado a uma violência doméstica já não é o primeiro episódio de agressão. Ele costuma ser o desfecho trágico de um histórico de abusos que, muitas vezes, é até do conhecimento de familiares e amigos da vítima. Isso facilita o trabalho da polícia até na prisão em flagrante do agressor”, avalia Olaya Hanashiro, consultora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), com sede em São Paulo. Por outro lado, quando os casos de feminicídios são excluídos da contabilidade geral de homicídio de mulheres, o desempenho investigativo da polícia sofre uma queda significativa. O percentual de inquéritos sem solução passa a ser de 55% dos casos.

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No comparativo com todos os crimes violentos letais intencionais (CVLIs) praticados no Estado (incluindo os homens), a taxa de esclarecimento dos homicídios só de mulheres, ainda assim, apresenta um cenário mais favorável. De acordo com dados da Polícia Civil, continuam sem resposta 64% dos crimes de CVLIs registrados nos seis primeiros meses deste ano. Apesar do alto percentual de homicídios sem esclarecimento, a gestora do Departamento de Polícia da Mulher (DPMul), Julieta Japiassu, diz que Pernambuco tem uma das melhores taxas de resolução do País. “De fato, os crimes de feminicídio têm um índice mais alto porque, em geral, as testemunhas falam, a cena do crime fala. Nos demais casos, que envolvem tráfico de drogas, organizações criminosas, vingança, enfrentamos a ‘lei do silêncio’. E a dificuldade é a mesma quando as vítimas são homens ou mulheres.”

“No Brasil, a investigação do crime contra a vida, que deveria ser uma prioridade, possui uma taxa de resolução baixíssima. Não é só a quantidade de inquéritos concluídos. O mais importante é a qualidade e a capacidade da apuração policial. É isso o que precisa ser considerado e melhorado”, reforça Olaya Hanashiro. No acompanhamento feito pelo #UmaPorUma, chama a atenção o quanto essa “qualidade de investigação”, ressaltada pela especialista, tem relação direta também com o trabalho da Polícia Científica. Em, pelo menos, três casos, o resultado das perícias foi determinante para mudar a motivação do assassinato para crime de feminicídio.

A morte da agricultora Maria Ambrosina da Silva, ocorrida em janeiro deste ano, em Cupira, no Agreste do Estado, nem havia sido contabilizada entre os crimes de CVLI. O tiro dado pelo próprio filho da vítima tinha sido considerado acidental e o inquérito foi fechado como homicídio culposo, quando não há a intenção de matar. Só após a conclusão da perícia, o caso ganhou um novo desfecho: os laudos apontaram que não só o tiro foi intencional, como a cena do crime havia sido alterada. O inquérito foi reaberto e o filho da agricultora terminou sendo indiciado pela polícia e denunciado pelo Ministério Público por crime de gênero.

UM CORPO NO LIXO

É com a ajuda da perícia que a polícia espera encontrar o culpado de um dos assassinatos de mulheres mais bárbaros registrados este ano. A dona de casa Rosineide Silva de Almeida, 35 anos, foi achada morta, no bairro da Imbiribeira, Zona Sul do Recife, no dia 12 de março, de uma forma desumana: no meio do lixo, entre objetos descartáveis, sujos, sem valor. Estava parcialmente nua, com a blusa levantada, e com as mãos amarradas pra frente do corpo. O rosto, quase irreconhecível, concentrava os sinais de espancamento por pauladas ou murros, a possível causa da morte. Foram recolhidos resíduos que estavam embaixo das unhas da vítima para, através de exames de DNA, tentar identificar o autor do crime bárbaro.

Nem sempre, no entanto, a cena do crime tem sido suficiente para determinar, de forma adequada, a motivação do assassinato. Quando a polícia entrou na pequena casa sem número da Travessa Rio Jaratuba, na Comunidade do Chié, bairro do Ipsep, Zona Sul do Recife, encontrou o corpo de Diana Regis Barbosa Ferreira, 50, de joelhos, vestido apenas de calcinha e amarrado a um lençol preso ao telhado. Durante a perícia realizada no local, foram encontrados preservativos usados e o exame feito no corpo da vítima pelo Instituto de Medicina Legal (IML) indicou que ela havia tido relações consentidas pouco tempo antes de ser morta. O resultado da investigação apontou que Diana foi assassinada pelo ex-companheiro, que não aceitava o envolvimento dela com outros homens. Apesar da motivação clara de feminicídio, o inquérito não foi concluído apontando a qualificadora no indiciamento do acusado.

No esforço de compreender por que e como as mulheres estão morrendo, o coletivo de jornalistas à frente do projeto #UmaPorUma não quer buscar apenas na polícia as respostas de quem as matou. O levantamento segue a trilha do inquérito, após a sua conclusão. Vai atrás da denúncia do Ministério Público e acompanha o andamento do processo no Judiciário. O balanço do primeiro semestre revela que, dos 67 inquéritos concluídos, 45 viraram denúncia (67%) e 36 já se transformaram em ação judicial (54%). Um desses casos é o da adolescente Sibelly Carla de Lima Silva, 14, assassinada pelo namorado, em São Lourenço da Mata, no Grande Recife, nas primeiras horas deste ano. A expectativa da família é que o julgamento de José Jorge Possidônio Ferreira, 27, réu confesso, ocorra o mais rápido possível. “Enquanto ele estava bebendo e se divertindo, ela estava lá, em cima da cama, morta e numa poça de sangue”, recorda a mãe de Sibelly, Elizabete de Lima, 36. Vai depender agora da Justiça julgar o primeiro feminicídio de 2018 antes que o ano acabe.

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Quase metade dos assassinatos de junho
foi feminicídio

Publicado em 29/07/2018

CIARA CARVALHO
ciaracalves@gmail.com

Viviane arrumou um novo namorado.
Maria Clara era só uma menina.
Virgínia foi estrangulada com um fio de ventilador.
Adilma tinha uma calcinha azul no bolso.
Antônia vivia sob ameaça.
Ivane já havia apanhado outras vezes.
Amanda queria amar de novo.
Letícia apenas não queria mais.

Oito vidas interrompidas. Em comum, a sentença de morte decretada pela simples condição de ser mulher. Praticamente metade dos assassinatos de mulheres ocorridos no mês de junho deste ano foi feminicídio. A estatística é assustadora. Dos 17 crimes, oito tiveram motivação de gênero. Em números absolutos, o quantitativo só fica atrás do mês de janeiro, quando foram registrados nove casos. Mas, proporcionalmente, o mês passado teve o pior cenário desde que o projeto #UmaPorUma começou a contabilizar os homicídios de mulheres em Pernambuco.

Em janeiro de 2018, foram 28 assassinatos, sendo 32% dos casos considerados feminicídios. O percentual de quase 50% de crimes de gênero registrado em junho revela que o sentimento de posse sobre o corpo da mulher continua a determinar o limite entre a vida e a morte. Um machismo com consequências ainda mais graves. Em dois dos oito registros, não só a mulher foi assassinada. O atual namorado também.

Em Abreu e Lima, no Grande Recife, Amanda Reges de Medeiros, 25 anos, foi arrastada com o companheiro, Bruno Raphael Alves Eloy, 27. Ela: dois tiros na cabeça. Ele: sete disparos no corpo. Na mesma Região Metropolitana, em Ipojuca, Viviane Maria de Oliveira, 29, mal teve tempo de tentar. Pouco mais de uma semana após iniciar um novo relacionamento com Paulo Cesar Oliveira da Silva, o casal foi assassinado a golpes de faca. Nas duas situações, a polícia aponta os ex-companheiros como autores do crime. Nas duas situações, o absurdo de a mulher não ter o direito de decidir sobre o próprio destino.

A faca cravada na nuca de Letícia Maria dos Santos, 29, é mais do que o choque. É a repetição, a covardia, a impossibilidade de defesa. A professora que dava aula para crianças pequenas estava resolvida a não continuar o relacionamento conturbado e violento que já durava mais de três anos. Finalmente pôs um ponto final. Mudou-se para a casa dos pais. Manteve-se firme.

No sábado, dia de 30 de junho, saiu às 5h30 de casa, no Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana. Ia ao Centro do Recife levar uma documentação para iniciar o sonhado curso superior em pedagogia. Com uma faca de cozinha, Jefferson Manoel de Lima, 27, a esperava no caminho. Desferiu seis golpes no rosto, cabeça e pescoço da ex-companheira. Os vizinhos ouviram os gritos de socorro. Mas, quando saíram de casa, Letícia já estava morta.

Jefferson foi preso poucos dias depois do assassinato. Confessou o crime. A morte de Andrea da Silva Cunha, 22, demorou mais tempo para ser esclarecida. Ela foi morta no dia 4 de março, dentro da casa de veraneio onde passava o fim de semana com amigos em Itamaracá, no Grande Recife. Na época, não havia uma motivação clara para o homicídio. Quase três meses após o crime, a polícia concluiu a investigação: Andrea foi morta pelo ex-namorado, que, inconformado com o fim da relação, a seguiu até Itamaracá. A jovem nem pôde se defender. Recebeu o primeiro tiro enquanto ainda dormia. Com a conclusão do inquérito, o mês de março, que registrava seis, passou a contabilizar sete casos de feminicídio.

Houve mudança também na estatística de maio. A morte de Juraneide Ramos do Nascimento, 48, ocorrida no dia 7 de maio, foi classificada pela polícia como feminicídio. O suspeito do assassinato, José Leandro da Silva, 63, morava com a vítima, numa granja no Cabo de Santo Agostinho. Quando o inquérito chegou ao Ministério Público, no entanto, o caso não foi denunciado à Justiça como crime de gênero.

Este mês, o MPPE informou que houve um aditamento da denúncia e a promotoria incluiu a qualificadora de feminicídio na lista de acusações contra José Leandro. Com a alteração, maio passa a registrar seis casos de feminicídio. No total, os seis primeiros meses de 2018 já somam 37 mulheres assassinadas pela condição de gênero em Pernambuco. É quase 30% de todos os homicídios registrados no Estado neste período.

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