A morte filmada e compartilhada
Publicado em 30/04/2018
JULLIANA DE MELO
jmelo@ne10.com.br
Foram 45 facadas. Lentamente, a cada golpe desferido, um ano de vida era retirado da agricultora Ivonete Maria dos Santos. Morreu aos 45 anos, brutalmente assassinada pelo companheiro, Severino Antônio Vieira, 54, na calçada de casa, em São Joaquim do Monte, Agreste de Pernambuco, no dia 18 de março de 2018. As imagens da sua morte, vista em plena luz do dia pelos vizinhos, foram gravadas em vídeo, fotografadas, e compartilhadas nas redes sociais e grupos de WhatsApp. Assim como o linchamento do agressor, que aconteceu logo após o assassinato da esposa. Uma violência sem tamanho, que gerou views e revolta. E mais violência.
O que logo chama a atenção na morte de Ivonete, ocorrida em um domingo à tarde após discussão banal regada a álcool, é que a população viu o crime acontecer e não se mobilizou para impedir o trágico desfecho. “As pessoas não fizeram nada por medo. Depois se juntaram e foram atrás dele, por revolta”, contou a delegada Gabrielle Nashida, que tinha assumido o posto na delegacia da cidade há menos de dois meses. Foi o primeiro caso de feminicídio do ano no município, marcado pelos altos índices de criminalidade.
A distância, impressionados com a cena dantesca das víceras de Ivonete expostas na rua, alguns vizinhos chegaram a gravar o crime. Entre a banalização do corpo daquela mulher e a espetacularização do assassinato, compartilharam tudo nas redes sociais. Rapidamente e sem cortes, os últimos minutos de vida de Ivonete já estavam sendo exibidos nos blogs do interior do Estado e programas policiais de TV. “Este é um fenômeno novo, que chega com a grande exposição nas redes sociais. Postar a foto da vítima, para ter audiência (likes e curtidas), tornou-se mais importante do que prestar socorro. A pessoa está mais preocupada em informar pelas redes que estava presente naquele momento, mesmo que seja uma calamidade”, destacou a coordenadora de projetos do Instituto Maria da Penha, Conceição de Maria.
Um dia antes do assassinato de Ivonete, a dona de casa Tatiana Apolônia da Silva, 34, gritava por socorro. Era sábado, e ela tinha acabado de chegar de moto com o companheiro, o marchante Cassiano Gonçalves do Vale, 39, ao apartamento no Condomínio Luís Cecchin, no bairro Lagoa Azul, zona urbana de Limoeiro, também no Agreste. O imóvel da família estava desocupado e naquele dia virou o endereço da sua morte. Apesar de ter pedido ajuda, ninguém fez nada.
Em depoimento na delegacia municipal, testemunhas disseram que as brigas entre o casal se intensificaram após um boato de traição. Contaram que Cassiano já tinha falado publicamente que um dia iria matá-la e depois se matar. Mas ninguém deu ouvidos. Já de noite, um vizinho chamou por ele, pedindo para que guardasse a moto porque a área era perigosa. Foi quando se deparou com os corpos do casal no corredor, entre a sala e os quartos. Antes da polícia chegar, curiosos já tinham entrado no apartamento e fotos da cena do crime também circularam pela cidade.
Após atingir a companheira com duas facadas nas costas e no rosto, Cassiano Gonçalves cortou a própria garganta, morrendo ao lado da mulher com quem teve quatro filhos e conviveu por quase 20 anos. “Ele era marchante e sabia o que estava fazendo, onde atingir o corpo de forma fatal”, disse a delegada Maria Betânia de Freitas Tavares, que investigou o crime, com fortes indícios de ter sido premeditado. Além da faca suja de sangue, na mesa da sala do apartamento, foram encontradas uma pedra e uma lima de amolar facas, aparentando terem sido usadas há pouco tempo. O inquérito foi concluído nove dias após o assassinato, também como feminicídio.
“A cultura machista ainda é muito forte, principalmente no interior, onde parte da população ainda julga a vítima, dizendo que ela mereceu, que procurou aquele fim trágico. É o que tentamos desconstruir nas novas gerações em atividades na escola”, ressaltou a secretária de Desenvolvimento Social e Cidadania de Limoeiro, Cristiane Barbosa. “A morte de Tatiana não foi provocada porque ela estaria traindo, mas porque Cassiano tinha ciúmes e sentimento de posse sobre a vida dela”, reforçou a delegada Maria Betânia.
DENÚNCIAS
Segundo Conceição de Maria, o componente cultural também pesa na decisão de denunciar uma agressão contra a mulher, uma vez que a violência doméstica ainda é vista como briga de casal. “O sentimento de que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher é muito forte, mas a sociedade precisa saber que existe a denúncia anônima e que pode ser feita por terceiros. Se tiver acontecendo uma agressão, principalmente com risco iminente de morte, é importante ligar imediatamente para a polícia no 190”, reforçou. E ensina que, em vez de sensacionalizar o crime, a denúncia é sempre mais efetiva do que qualquer filmagem ou registro em foto. “Quando você liga para a polícia você dá conhecimento ao Estado sobre o que está acontecendo. E se a vítima, depois da denúncia, voltar pra casa e for assassinada pelo companheiro, essa morte é de responsabilidade do Estado.”
Para a jornalista e cofundadora da rede Mete a Colher Renata Albertim, o silêncio é uma forma de negar a defesa à mulher. “A sociedade não vê que, quando fica calada, ela escolhe o lado do agressor. É preciso acolher esta mulher, mas respeitando a decisão dela de denunciar, porque dependendo da forma como esta denúncia acontece, e se a vítima permanece na relação, o homem pode se tornar ainda mais agressivo”, alerta. No aplicativo da rede no Facebook, que existe há dois anos, as mulheres são estimuladas a se ajudarem, dando e recebendo apoio emocional, orientação jurídica, e suporte para se inserir no mercado de trabalho. Uma espécie de corrente para ajudar a vítima a sair da relação e quebrar o ciclo da violência. É exclusivo para mulheres, gratuito e pode salvar vidas.
Existe também o serviço Disque 180, do governo federal, um disque-denúncia que encaminha os casos aos órgãos competentes de cada Estado.
LEGISLAÇÃO
O crime por compartilhamento das imagens de cadáveres ainda não está na legislação. Mas, tudo indica, por pouco tempo. A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou no dia 17 de abril a proposta que pune, com prisão, quem reproduz imagens aviltantes de cadáver nos meios de comunicação, na internet e em outras mídias - o que inclui as redes sociais e aplicativos como o WhatsApp.
O projeto, que aumenta em um terço a pena se o responsável pela divulgação tiver acesso às imagens por meio de sua profissão, agora segue para votação em plenário. O advogado Marco Eugle, do escritório Opice Blum, especializado em direito digital, alerta: “Se uma pessoa, por impulso, pega o celular para filmar um assassinato e, por isso, não auxilia a vítima, pode ser enquadrada no crime de omissão de socorro, previsto no Artigo 135 do Código Penal Brasileiro".
Em tempo: as imagens dos assassinatos de Ivonete e de Severino em São Joaquim do Monte serviram de prova e estão nos autos dos inquéritos. Três homens foram indiciados pelo linchamento de Severino. “Eram pessoas conhecidas dele, que se revoltaram com a violência. Todas se apresentaram na delegacia e, por isso, vão responder em liberdade”, explicou a delegada Gabrielle Nishida.