A resistência de quem conseguiu sobreviver
Publicado em 31/12/2018
ADRIANA VICTOR
avictor@sjcc.com.br
Um corpo cheio de cicatrizes, outro sem nenhuma marca aparente. Mas as duas mulheres - cujos nomes serão omitidos - lembrarão de 2018 como o ano em que sobreviveram: a perseguições, crises de ciúmes corriqueiras, humilhações, torturas, espancamentos constantes e, por fim, a tentativas de assassinato. Mais de 200 quilômetros separam as cidades das duas, ambas em Pernambuco. Mas as suas trilhas de vida, permeadas por amor e desamor, estão entranhadas a ponto de guardarem uma perturbadora semelhança. Para contar as suas histórias - e a partir delas pôr à luz um ciclo de violência que parece inesgotável - chamaremos ambas de Maria.
Aos 23 anos, uma delas vive no Agreste de Pernambuco. No dia em que não morreu, o ex-marido, pai de sua filha, na época aos 9 meses, abordou-a na rua. “Vou fazer uma última pergunta: tem certeza de que não quer voltar pra mim?”, indagou. Assim que Maria confirmou a disposição de não mais voltar, ele puxou a faca. “Me deu 13 facadas. Depois, me vendo no chão, entrou no carro e me atropelou, passou com ele por cima de mim”, relembra.
A pancada derrubou o muro de uma casa, onde ela buscou abrigo. Os vizinhos ouviram os gritos e foram socorrê-la. Incendiaram o carro dele, que fugiu. Está livre até hoje, quase seis meses depois do crime. Ela não. “Ele está solto, foragido. Eu vivo assustada. Não tenho paz pra sair na rua, pra criar meus filhos. As pessoas se afastaram de mim. Quem quer viver perto de alguém que pode ser assassinada a qualquer momento?”
Atingida pelas facadas nos dois braços, tórax, peito, costas, pernas e dedo, Maria foi levada ao hospital. Ficou internada, sobreviveu. Ela admite: as agressões começaram no início do relacionamento, que durou três anos. “Ele sempre me bateu. Batia e dizia que estava arrependido, que ia mudar. Eu sempre fui acreditando e sempre fui adiando a separação.” As surras, todas motivadas por ciúmes, aconteciam de várias formas: “No começo foi fio, foi murro, foi tapa, foi cabo de vassoura. Ele me jogava contra a parede, me trancava dentro de casa, não deixava sair nem pra ver a minha família”.
Ela conta que apanhou muitas vezes quando estava grávida da filha dele e apanhou também durante o período de resguardo. O filho mais velho de Maria, de outro relacionamento, testemunhou muitos dos espancamentos. “Um dia, a pessoa diz: vou sair disso porque estou morrendo.”
Moradora do Agreste de Pernambuco, a vítima levou, em julho, 13 facadas do ex-companheiro, com quem viveu por 3 anos. Depois de ferida, foi atropelada por ele
A filha do casal tinha 4 meses quando Maria decidiu procurar a Secretaria da Mulher de Garanhuns. Foi acolhida e enviada a um abrigamento - o acolhimento institucional que tenta proteger mulheres vítimas de violência. O ex-companheiro ficou impedido de aproximar-se dela. Descumpriu a medida protetiva uma e depois outra vez. Foram três boletins de ocorrência. Até que usou a faca e o carro para tentar matar Maria.
“A gente erra quando acredita que ele vai parar, vai mudar. Se bater a primeira vez, não para não.” Assumindo os seus erros e as suas dores, Maria tenta imaginar o futuro e o recomeço que apontam a cada novo ano: “Este foi um ano muito perturbado pra mim. Desejo, do fundo do meu coração, que o que vem seja diferente. Que eu possa ter a liberdade de ir e vir, levar o meu filho na escola, poder arrumar um emprego. E não ter medo de ter uma rotina, dele fazer algum mal para mim e pra quem está perto de mim. Enquanto estou me escondendo, ele está livre.” E finaliza: “Só o que eu quero é paz na minha vida. Porque se eu disser a você que tenho paz, hoje, estou mentindo”.
“DE UM POR UM”
No Grande Recife, outra sobrevivente relembra 2018. No ano em que ela não morreu, o ex-marido disparou, nas primeiras horas da tarde, cinco tiros à queima roupa: mirava Maria, 28 anos, e os três filhos do casal. Haviam sido casados por 11 anos.
Maria tinha decidido sair da casa onde permaneceu vivendo depois da separação. Descobrira, poucas horas antes, que ele havia clonado o celular dela; mandava mensagens em seu nome. Também avisou a família dela que iria matá-la. “Começou aí a tortura”, conta. “Ligou pra todo mundo, dizendo que ia me matar e matar quem estivesse comigo. Falou assim até: ‘bote os meninos pra fora que eu vou dar um tiro na cabeça, de um por um’.”
Para tentar escapar, ela chamou um carro através de um aplicativo de transporte. Assim que a família botou os pés fora de casa, ele estava à espreita, numa moto: disparou o revólver tendo como alvos os filhos e a ex-companheira. “Só deu tempo de o rapaz estacionar no portão da minha casa. Ele largou a moto no chão e correu atirando, sem pena, na gente.” Maria empurrou os filhos para dentro do carro e gritou, em desespero: “Acelera, moço, acelera!”. Ela nem consegue explicar como todos escaparam dos disparos.
O motorista acelerou. Mas, poucos metros à frente, ordenou que todos descessem do carro; deixou a mãe e os três filhos pequenos no meio da rua. Ela pediu ajuda a moradores do local. O ex-marido fugiu. Segue livre, apesar de ter descumprido, antes dos disparos, duas medidas protetivas, que impediam a aproximação dos dois. “Ele está descumprindo ordem e mais ordem e eu não estou vendo nada. Punição nenhuma pra ele”, desabafa.
“SEDE DE MIM”
Escondida em local desconhecido até por seus pais, protegida apenas por uma amiga, Maria segue refém do crime do qual é vítima. “É horrível. Você não pode ir ali comprar um pão. Não pode ir pra frente de casa pra olhar a rua.” Privação de liberdade que atinge os filhos: “Não deixo nem meus filhos gritarem com medo que alguém escute. Eles não estão indo à escola. À noite, dizem que o pai está vindo nos matar. Dependo até que alguém traga comida pra mim aqui”.
Assim como a Maria do Agreste, ela também relata inúmeras agressões físicas antes da tentativa de assassinato. “A que mais me marcou foi quando ele chegou em casa e me chutou com a ponta do pé. Deu uma tapa na minha cara que eu caí no chão. Daí ele me meteu murro, tanto murro que eu desmaiei. Quando retornei, meu corpo ficou todo doído. Fiquei com muita vergonha de falar, de sair de casa porque as pessoas iam me condenar, me criticar.”
Por três vezes, tentou voltar a estudar; ele ia buscá-la na escola, não permitia que assistisse às aulas. Não deixava que falasse com outros homens, às vezes nem com o próprio pai. No telefone celular, ela guarda muitas gravações: “Tem mensagem que ele diz que me ama. E depois diz que quer me matar. Tem sede de mim”. Aos poucos, foi entendendo que não poderia mais seguir: “Eu passava todo santo dia uma tortura com ele. Fui criando forças, procurei a polícia pra dar parte dele”.
Coragem é a palavra escolhida pelas duas para aconselhar outras mulheres que vivem situação semelhante: “Digo que tomem coragem. Coragem pra ir à luta, ir pra frente”, diz a Maria que se esconde depois de escapar de tiros. Cheia de cicatrizes, a outra Maria reforça: “Não fique esperando por amor. É muito bom amar quando se é amado também. Vá viver a sua vida. Lute! Lute!”.