E se elas tivessem denunciado?
Publicado em 27/05/2018
JULLIANA DE MELO
jmelo@ne10.com.br
Quando soube da morte trágica da professora Maria Dilma Bernardo Alves, 44 anos, no dia 12 de março de 2018, a gestora da Coordenadoria da Mulher de Lagoa do Ouro, no Agreste de Pernambuco, Kallyanne Brasil, compartilhou o mesmo sentimento de frustração e impotência de familiares e amigos mais próximos da vítima. “Estive tão perto e não consegui ajudar”, lamentou.
Maria Dilma foi encontrada já sem vida ao lado do corpo do agricultor Cícero Alves Cordeiro, 48, com quem tinha um conturbado relacionamento amoroso de seis meses, marcado por ameaças, agressões verbais e físicas, e separações no passado. Estavam lado a lado no sítio de propriedade de Cícero, na zona rural do município. O delegado José Custódio da Silva Júnior, que está à frente das investigações, ainda não confirma se o caso será considerado feminicídio. Está à espera de laudos periciais para concluir o inquérito.
Mas a violência doméstica sofrida por Maria Dilma, que chegou a ser agredida fisicamente em setembro do ano passado, era de conhecimento da polícia. “Eu fui até o hospital falar com ela e a conduzi para a delegacia para colher o depoimento, uma vez que não tinha testemunha. Mas ela não quis representar o BO (boletim de ocorrência). Depois disse que inventou a agressão porque estava com raiva dele”, contou o comissário de polícia André Felipe. Kallyanne Brasil, que estava na delegacia no momento acompanhando outro caso, foi chamada para o procedimento. “Eu insisti para Maria Dilma seguir com o processo, solicitar a medida protetiva ou receber atendimento psicológico, mas ela recusou tudo.”
Ali, naquele momento, a professora poderia ter escrito um final diferente para sua história. Diferente poderia ter sido também o desfecho das histórias de Sibelly, Joseane, Cátia, Dayanne, Veroneide e outras tantas mulheres vítimas de feminicídio em Pernambuco, se tivessem procurado ajuda policial, transferindo para o Estado a responsabilidade de garantir sua segurança. Não se trata de culpabilizar as vítimas, que enfrentam diversos entraves para interromper o ciclo da violência: desde dependência financeira e emocional à falta de apoio psicológico e acolhimento adequado nos serviços públicos. Mas as estatísticas são contundentes e acendem um importante alerta: é fundamental denunciar.
Números levantados pelo projeto #UmaPorUma revelam que, das 21 mulheres mortas por feminicídio em Pernambuco, entre janeiro e abril de 2018, apenas duas haviam prestado queixa de violência doméstica na delegacia. E, mesmo assim, uma delas retirou o registro. A agricultora Denise Rufino de Oliveira, 28, sabia que estava em risco. Após decidir se separar do companheiro Ailton Severiano da Silva, 29, procurou a Delegacia de Pombos, no Agreste do Estado, para solicitar medida protetiva e denunciar as ameaças feitas pelo marido, pai de um dos seus três filhos. Porém, meses depois, ela retirou a queixa e pediu cancelamento do processo na Justiça. No fim de 2017, Denise voltou a buscar ajuda na delegacia. Poucos meses depois, foi morta com um tiro na cabeça no dia 17 de janeiro, na própria casa, no bairro de Primavera, por um assassino de aluguel contratado, segundo a polícia, pelo marido, que está foragido.
Já a família de Viviane Maria de Santana, 38, conta que ela tinha dado parte contra o ex-marido Josenildo de Barros Silva, 50, com quem viveu por 12 anos um relacionamento abusivo e violento. Segundo um parente, que preferiu não se identificar, ela fez de tudo para escapar da morte. “Sabe quantas vezes ela se mudou de casa? Ela não parava em casa nenhuma e ele sempre achava ela.” No dia 16 de janeiro, Josenildo, que era sargento reformado da Polícia Militar, encontrou o último endereço dela. Na casa para onde tinha se mudado há apenas duas semanas, localizada no bairro do Pilar, em Itamaracá, na Região Metropolitana do Recife, Viviane foi executada a tiros pelo ex-companheiro, que se matou em seguida. A Delegacia de Itamaracá, que investigou o crime, não forneceu mais informações sobre o caso.
ALÉM DA LEGISLAÇÃO
Criada em 2006, a Lei Maria da Penha trouxe avanços importantes no combate à violência doméstica, mas existe um consenso entre especialistas de que precisa ir além para coibir os assassinatos de mulheres no País. “O que a gente vê é que, apesar de ser uma lei bem feita, ela necessita de ajustes do ponto de vista do processo penal. Porque existe um amplo número de casos acontecendo o tempo todo no Brasil, que está no topo do ranking de feminicídio. E essa lei parece não estar coibindo essa prática”, ressalta Luciana Ramos, coordenadora do Índice de Confiança na Justiça (ICJBrasil), produzido pela Fundação Getúlio Vargas Direito/SP.
Em março deste ano, o ICJBrasil divulgou uma análise sobre os aspectos relacionados à Lei Maria da Penha. A principal conclusão da pesquisa é que a maioria dos 1.650 entrevistados, de oito unidades da Federação, considera que a lei é pouco ou nada eficaz para proteger as mulheres da violência. Esse número equivale a 80% das pessoas consultadas, sendo que 53% afirmam que a lei protege pouco e 27%, que protege nada. Apenas 18% afirmaram que a Lei Maria da Penha protege muito. Essa porcentagem varia bastante entre os Estados. O Distrito Federal (63%) e a Bahia (61%) possuem o maior percentual de entrevistados que afirmam que a lei protege pouco os direitos das mulheres. Na outra ponta, Pernambuco é o Estado onde esse percentual é menor (39%).
Pernambuco também se destaca como o único Estado em que o número de entrevistados que conhecem a lei (48%) supera o de pessoas que têm um conhecimento mediano da legislação (44%). A média nacional foi de 25% e 61%, respectivamente. Apenas 1% respondeu que nunca ouviu falar sobre a lei e 13% afirmaram que não sabem muito bem do que ela trata, apesar de já terem ouvido falar da legislação. “Em Pernambuco temos estrutura, mas, na contramão, enfrentamos dificuldade para homogeneizar as práticas. Não há diálogo e consenso entre as instituições e os agentes públicos na aplicabilidade da lei, corroborando para que a violência institucional agrave a situação da vítima”, afirma a diretora pedagógica do Instituto Maria da Penha (IMP), Regina Célia.
Segundo ela, quando a mulher busca os canais de proteção e é mal acolhida, ou antes disso, lê na mídia sobre casos que não tiveram solução, ela pode desistir de fazer a denúncia. “A vítima recua quando não vê uma sustentabilidade na ação do poder público. E, na proporção inversa, o autor da agressão volta a ameaçar, potencializando a violência.” Apesar dos problemas, os números também mostram que muitas mulheres passaram a se sentir mais seguras para denunciar seus agressores.
De acordo com os dados da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco, foram registrados 12.539 Boletins de Ocorrência com casos de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, entre os meses de janeiro e abril de 2018. As delegacias do Estado, incluindo as Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAM), encaminharam à Justiça, no mesmo período, o pedido de 3.958 medidas protetivas, que podem ser solicitadas em qualquer tipo de crime estabelecido na Lei Maria da Penha. Só é necessário que a vítima deseje requerer.
“Mesmo que tenham muitas denúncias, há muitos casos em aberto também. A vulnerabilidade é muito grande quando não tem a contrapartida do poder público. Mas a denúncia deve existir acima de tudo para impor mais compromisso do Estado”, destaca a diretora pedagógica do Instituto Maria da Penha. Às vítimas de violência doméstica, Regina Célia indica buscar apoio nos Centros de Referência à Mulher, após prestar queixa na delegacia, para “receber acolhimento, estabilização da condição psicológica, orientações jurídicas, e até encaminhamento à casa abrigo, se for o caso”.
No rodapé desta página, veja a relação dos centros de referência disponíveis no Estado. O caminho para pedir ajuda pode representar mais uma vida salva.