Eles vão fazer o que em favor da mulher?
Publicado em 30/09/2018
CIARA CARVALHO
ciaracalves@gmail.com
Durante breves três meses a agricultora Márcia Daniele de Lima Silva, 29 anos, conseguiu ter uma noite de sono sem temer a morte. Finalmente, o homem que a agrediu por mais de dez anos com socos, murros, chutes e ameaças havia sido preso, em maio deste ano, por descumprir medida protetiva. Como mandam as autoridades, ela denunciou o marido. Criou coragem. Fez a sua parte. Acreditou que o Estado iria cumprir seu papel de protegê-la. Mas, na manhã do dia 17 de agosto, por volta das 7h30, Márcia Daniele estava em casa, no município de Serra Talhada, no Sertão do Estado, quando foi surpreendida pelo pedreiro Luiz Vicente de Oliveira, 50. Estava acompanhada dos filhos, uma menina de 10 e um menino de 6 anos. Ao ver o pai enfurecido com uma faca de cozinha na mão, as crianças correram para o quarto. Luiz Vicente atacou Márcia Daniele com vários golpes no tórax, pescoço e rosto. Em seguida, com a mesma faca, cortou os próprios pulsos. Ao perceber que não morreria de imediato, golpeou o pescoço.
Por que Luiz Vicente foi parar na casa da ex-mulher se ele estava preso? A resposta: ele foi um dos detentos escolhidos para deixar o presídio de Salgueiro e ir fazer uma obra na cadeia pública de Serra Talhada, justamente a cidade onde Márcia Daniele morava. Aproveitou para fugir e ir atrás da ex-mulher para matá-la. Agora o Ministério Público abriu investigação para saber de quem foi o erro que resultou em mais um feminicídio. Da direção do presídio (que escolheu Luiz Vicente), da Justiça (que autorizou a saída dele) ou da Polícia Militar que custodiava os presos na obra da cadeia? Seja qual for a conclusão, nada trará a vida de Márcia Daniele de volta. E a constatação de que o Estado falhou ao proteger mais uma mulher que denunciou a violência doméstica.
A história de Márcia Daniele é o dedo na ferida. Dói e revolta. Por um lado, um duro golpe no sempre necessário discurso de que a mulher não pode aceitar ser agredida em silêncio porque é a denúncia que vai ajudá-la a barrar o ciclo da violência. Por outro, escancara a exigência diária por uma rede de proteção e de assistência que, efetivamente, consiga afastar o agressor da vítima. É nesse campo, o da cobrança, que o caso de Márcia Daniele se agiganta. Porque vai além de uma tragédia pessoal. Denuncia as falhas no sistema de segurança e justiça que não se resolvem apenas com promessas de mais delegacias especializadas.
“Esse é um recado devastador porque expõe a fragilidade da rede de proteção. Se você diz: ‘denuncie’. Você tem que estar preparado para proteger essa mulher. Não basta apenas aplicar a medida protetiva. O Estado tem que acompanhar o cumprimento dessa medida”, afirma a cientista política Priscila Lapa. Com base na leitura dos programas de todos os candidatos ao governo do Estado, ela avalia que as propostas apresentadas são genéricas e não dão conta da complexidade que o tema exige. “Nenhum deles, por exemplo, aponta de onde vão sair os recursos para a adoção das medidas. Só se faz política pública com dinheiro e a questão orçamentária nunca é tratada quando se colocam as propostas para o enfrentamento da violência de gênero”, avalia.
Hoje, no Estado, existem 11 delegacias de atendimento à mulher e quatro casas-abrigo. Em geral, todos os candidatos prometem aumentar o número de delegacias especializadas e o efetivo de policiais, sobretudo no interior, onde a rede de proteção e assistência é mais precária. “Fala-se muito pouco de prevenção. O problema da violência de gênero é colocado dentro de uma questão mais ampla de segurança, mas o tema tem especificidades que demandam outro tipo de enfrentamento. Sem a mudança estrutural, no comportamento machista da sociedade, não conseguiremos uma redução significativa dos números”, reforça Priscila Lapa.
É o que, na prática, tem ocorrido. Das 167 mulheres assassinadas de janeiro a agosto deste ano, 50 foram vítimas de feminicídio. Isso corresponde a 30% de todos os homicídios praticados nos oito primeiros meses de 2018. Quase um terço dos 21 assassinatos registrados no mês passado tiveram como motivação o crime de gênero. No mês de julho, o percentual foi ainda mais assustador: em praticamente metade das mortes, as mulheres foram assassinadas pela simples condição de ser mulher. E elas morrem cada vez mais jovens.
Com apenas 18 anos, Poliana Martins da Silva levou chutes pelo corpo. O rosto foi o alvo principal. Foi encontrada pelo pai agonizando, na sala de casa, quase asfixiada pelo próprio sangue. Tinha um quadro de traumatismo craniano, costelas, mandíbula e pescoço quebrados. À polícia, o namorado, autor das agressões, alegou que não lembrava que havia espancado a companheira até a morte. Na verdade, as agressões eram frequentes. Diferentemente de Márcia Daniele, Poliana nunca havia prestado queixa de violência doméstica. Nem contra o atual companheiro nem contra outros dois ex-parceiros com quem se relacionou e que também costumavam agredi-la. Atitudes diferentes com desfechos igualmente trágicos.