Feminicídio: um crime, vários entendimentos
Publicado em 24/06/2018
CIARA CARVALHO
ciaracalves@gmail.com
O assassinato da estudante Maria Alice Seabra foi o primeiro caso de indiciamento por feminicídio da Polícia Civil de Pernambuco. A jovem foi assassinada em junho de 2015, apenas três meses após a aprovação da Lei do Feminicídio. Um crime brutal que chocou o Estado. Aos 19 anos, Maria Alice foi sequestrada, dopada, estuprada, teve o braço mutilado e o corpo parcialmente despido e abandonado no canavial. No mês passado, o julgamento de um dos crimes de gênero mais emblemáticos de Pernambuco encerrou-se de forma frustrante. O padrasto da vítima, Gildo Xavier, 36, foi condenado a 35 anos de prisão. Não por crime de feminicídio. A qualificadora sequer fez parte da sentença. Não se trata de um caso isolado. O resultado do júri evidenciou uma dura realidade: apesar de já estar há três anos em vigor, a lei ainda esbarra na falta de consenso por parte de autoridades do sistema de segurança e justiça. A consequência é cruel: entre um entendimento e outro, casos como o de Maria Alice se perdem nas estatísticas e acabam escapando do necessário carimbo de feminicídio.
A frustração pelo resultado do julgamento não diz respeito exatamente à pena imposta ao agressor. Mas ao caráter pedagógico que uma condenação por feminicídio deveria ter em um assassinato tão brutal. É fundamental chamar pelo devido nome o crime de posse e de ódio que vitima a mulher pela simples condição de gênero. Igualmente importante é fazer com que esses assassinatos apareçam nas contabilizações oficiais. No caso da estudante assassinada pelo padrasto, a denúncia oferecida pelo Ministério Público manteve a qualificadora apontada no inquérito. Foi quando o caso chegou ao Tribunal de Justiça de Pernambuco que o assassinato ganhou outro encaminhamento. O Judiciário entendeu que não havia elementos para caracterizar o feminicídio e retirou a qualificadora da sentença de pronúncia do acusado. Com isso, Gildo Xavier terminou se livrando de ser condenado pelo crime de gênero.
No mês passado, bem longe da mídia e sem comoção pública, Juraneide Ramos do Nascimento, 48, foi assassinada a facadas pelo companheiro com quem se relacionava há três meses. José Leandro da Silva, 63, foi preso e confessou o crime. A Polícia Civil concluiu o inquérito e informou que o acusado foi indiciado por feminicídio. Mas na denúncia oferecida pelo Ministério Público não consta a qualificadora. Novamente, um caso clássico de crime de gênero corre o risco de ser julgado sem a devida notificação. A situação inversa também ocorre. No levantamento feito pelo projeto #UmaPorUma, que contabiliza todos os assassinatos de mulheres ocorridos no ano 2018, pelo menos, em três casos, nos quais homens assassinaram suas atuais e ex-companheiras, os inquéritos concluídos pela Polícia Civil não faziam referência ao feminicídio. Em todos eles, coube ao Ministério Público modificar o entendimento e incluir a qualificadora.
"A câmara técnica identifica os indícios que evidenciam o crime de gênero e alerta para que aquele caso seja visto com a devida atenção por delegados e promotores. É um esforço para que se busque a verdadeira motivação e que ela seja efetivamente registrada.”
É justamente para evitar que omissões, como as dos casos de Maria Alice e Juraneide, continuem ocorrendo que uma câmara técnica se reúne para analisar todos os assassinatos de mulheres em Pernambuco. O grupo vê a motivação preliminar e envia ofícios para a Polícia Civil e Ministério Público, recomendando a inclusão da qualificadora do feminicídio nos casos em que a condição de gênero foi ou tem um indicativo de ter sido determinante para a morte da vítima. “É uma forma educativa. A câmara identifica os indícios que evidenciam o crime de gênero e alerta para que aquele caso seja visto com a devida atenção por delegados e promotores. É um esforço para que se busque a verdadeira motivação e que ela seja efetivamente registrada”, afirma Bianca Rocha, diretora-geral de enfrentamento de gênero da Secretaria Estadual da Mulher e uma das integrantes da câmara técnica.
Como tanto a Polícia Civil quanto o Ministério Público têm autonomia constitucional para definir as tipificações criminais apontadas, respectivamente, no indiciamento e na denúncia dos acusados, a orientação é meramente indicativa. Nem sempre, portanto, é seguida pelas autoridades. Após analisar as informações sobre o assassinato de Edjane da Silva, executada, segundo o inquérito, a mando do companheiro, a câmara técnica recomendou que o crime fosse considerado feminicídio. O caso ocorreu em janeiro deste ano, em Arcoverde, no Sertão do Estado.
De acordo com as informações presentes no inquérito, de dentro do presídio, José Ivan Ferreira de Barros teria ordenado a morte de Edjane, depois de ter visto uma foto da companheira dançando com outro homem, o que seria uma prova de que estava sendo traído. José Ivan chegou a dizer para o irmão da vítima, que também cumpria pena, que iria mandar matá-la, por causa da suposta traição. Apesar dos indícios e do alerta feito pela câmara técnica, nem a Polícia Civil nem o MPPE consideraram o assassinato de Edjane um crime de gênero.
A impunidade para os casos de feminicídio ainda é tão gritante que, mesmo quando os inquéritos policiais incluem a qualificadora, a punição na Justiça ainda passa ao largo da lei. Levantamento divulgado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Pernambuco, revela que, de 258 inquéritos concluídos com indicação de feminicídio, apenas seis processos foram adiante. E só quatro viraram condenações na Justiça.
O estudo é resultado do trabalho de conclusão de curso da bacharel em direito Albéria de Menezes Bezerra. Ela analisou os casos registrados no período de março de 2015, quando a Lei do Feminicídio entrou em vigor, até março de 2017. “Ficou evidenciado que a lei não vai ter efetividade se não houver um comprometimento maior das instituições. O mais importante é punir os agressores”, afirma Albéria. “Precisamos fazer um esforço para mudar a cultura e unificar o entendimento sobre esse tipo de crime na sociedade. A produção de estatísticas confiáveis é fundamental para gerar políticas de prevenção”, reforça Ana Luiza Mousinho, coordenadora da Comissão da Mulher Advogada da OAB, em Pernambuco. Registrar o crime de feminicídio quando ele, de fato, ocorre vai além de punir o agressor. Evita que novos casos aconteçam.