Mais uma luta para a mulher transexual
Publicado em 26/11/2018
ÍSIS LIMA
isisgslima@gmail.com
Na madrugada do dia 12 de agosto deste ano, dois homens armados teriam se aproximado e efetuado vários disparos de arma de fogo contra a travesti identificada como Renata, 25 anos, na Rua Teixeira de Sá, no Centro do Cabo de Santo Agostinho, Região Metropolitana do Recife. A vítima morreu no local. O caso de Renata não entrou na lista do projeto multimídia #UmaPorUma, que contabiliza todas as mulheres assassinadas em Pernambuco em 2018, porque a Secretaria de Defesa Social só inclui nessa relação mulheres cisgêneras, ou seja, que se identificam com o sexo biológico com o qual nasceram. A vivência feminina das transexuais e travestis e os crimes cometidos contra elas, no entanto, acendem o alerta. Apesar das estatísticas alarmantes, a Lei do Feminicídio não protege essas vítimas. Um entendimento que já levanta questionamentos e gera novas interpretações da legislação.
Em 2016, o Ministério Público de São Paulo ofereceu denúncia pelo crime de feminicídio contra o ex-companheiro de uma mulher trans. Vítima também de violência doméstica, ela foi morta a facadas pelo homem com quem manteve um relacionamento durante 10 anos. “Foi o primeiro caso de oferecimento de denúncia de transfeminicídio. A vítima era tratada como mulher e companheira do acusado, sendo certo que foi morta em razão do sexo feminino e em contexto de violência doméstica e familiar”, explicou a promotora de justiça de São Paulo Juliana Tocunduva, em entrevista, por e-mail.
A Lei do Feminicídio foi aprovada em março de 2015. Diante da pressão da ala conservadora do Congresso Nacional, o texto inicial terminou sendo alterado e houve uma substituição da explicação da qualificadora: “contra a mulher por razões de gênero” passou a ser “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. A mudança acabou restringindo o alcance da legislação. “O que a gente tem conseguido, ultimamente, é que alguns membros do Ministério Público já têm denunciado o assassinato de mulheres transexuais e travestis por feminicídio por analogia. Eles alegam que a pessoa vive a identidade de gênero feminina, então ela tem que ser abarcada por essa lei”, explica a advogada trans do Rio de Janeiro Maria Eduarda Aguiar. Justamente o entendimento defendido pela promotoria de São Paulo.
Em todo o País, 146 mulheres transexuais e travestis já foram mortas este ano, segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE). Em 2018, Pernambuco já contabiliza sete assassinatos como o de Renata, de acordo com a mesma listagem.
O número de casos, no entanto, pode ser maior devido à subnotificação, já que não há dados oficiais. A advogada Maria Eduarda Aguiar é membro da Antra e a primeira advogada transexual a receber a carteira da OAB com o nome social. Ela reforça a necessidade de um dossiê para notificar esses crimes. “A Antra faz a contagem. Só que não são dados oficiais. O levantamento da gente é pelas matérias publicadas nos jornais, pelo que a gente tem conhecimento através de mídias sociais e pelo que a gente investiga”, justificou.
Em março do ano passado, o assassinato da travesti Dandara, em Fortaleza, capital do Ceará, chocou o Brasil. Ela foi brutalmente espancada, a agressão filmada e divulgada nas redes sociais. Ao final, Dandara acabou baleada pelos seus algozes. Com destaque também internacional pela violência do crime, os assassinos terminaram sendo julgados um ano depois do crime. A rapidez, no entanto, não é a mesma para centenas de vítimas que permanecem invisíveis. “Em Portugal, há muitos anos, aconteceu caso semelhante com Gisberta, uma brasileira, transexual que foi morar naquele país. O assassinato dela gerou grande debate e leis de proteção à população trans lá em Portugal. Aqui no Brasil, mortes brutais não geram nenhuma movimentação legislativa para que sejam criadas leis de combate e ações educativas”, criticou Maria Eduarda.
NOME DE REGISTRO
Na 14ª Delegacia de Polícia de Homicídios, que investiga a morte de Renata, a travesti é tratada pelo nome de registro. O não reconhecimento da identidade de gênero quando as vítimas não têm os documentos retificados é outro problema para a contabilização dos casos. “É necessário intensificar o trabalho educativo junto aos policiais para que conste a identidade de gênero da pessoa, o nome social, mesmo que a pessoa não tenha modificado os documentos. Porque se o registro é no nome civil, muitas vezes diverge da identidade de gênero e do nome social da vítima, e assim não se consegue contabilizar oficialmente”, destacou a advogada.
Entre janeiro e outubro de 2018, 29 pessoas LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) foram mortas, segundo dados da Polícia Civil de Pernambuco. Os dados, no entanto, não discriminam quantas dessas vítimas eram pessoas trans.
Como solução para as subnotificações, militantes e grupos que trabalham na proteção da população LGBT defendem a criação de um documento que reúna, de forma oficial, todos esses casos, para que sejam criadas políticas públicas e ações de combate. Atualmente, a contabilidade desses assassinatos é feita apenas por ONGs ou grupos independentes, como a Antra. No Brasil, o Grupo Gay da Bahia (GGB) reúne há 40 anos todos os homicídios e suicídios de pessoas LGBTs. O site Homofobia Mata, que provoca ao questionar “Quem a Homofobia Matou Hoje?”, tirou do papel o levantamento iniciado pelo antropólogo Luiz Mott, um dos principais nomes do movimento LGBT no Brasil. Quatro décadas depois, a contagem continua sendo feita da mesma forma, usando como fonte principal as notícias dos jornais.
Hoje, Eduardo Michels, funcionário público e membro da GGB, é o responsável pela atualização dos dados que constam no endereço eletrônico. Ele realiza o trabalho de forma voluntária e conta com o auxílio das redes sociais. No site também são contabilizados os casos de suicídio. “Nós consideramos que o suicídio é um assassinato social da vítima. É uma homofobia estrutural, cultural, é difícil identificar esse tipo de morte. A maioria das pessoas vive num sistema opressor e tem muita gente que não aguenta”, lamentou.
Segundo Eduardo Michels, os homens gays são os maiores alvos dos assassinatos, mas são as mulheres trans e travestis as pessoas mais vulneráveis. Segundo o GGB, o Brasil é o País que mais mata a população trans. A expectativa de vida dessas vítimas é de apenas 35 anos, quase metade da média nacional, que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é de 75,5 anos.
“Em números absolutos ainda tem uma pequena prevalência para o número de mortes de gays. Logo em seguida, vem a população trans. Mas nós frisamos bem que a população trans ainda corre mais perigo por causa da própria exposição. São pessoas que geralmente não conseguem emprego e não conseguem ‘disfarçar’. Você olha para uma travesti, você vê logo que é travesti. Mais de 90% são trabalhadoras do sexo, trabalham na rua, em prostituição. Então, elas estão mais propensas a riscos de assassinatos”, apontou.
Renata residia na rua e era profissional do sexo. Segundo a polícia, ela costumava roubar e furtar clientes, além de ser viciada em crack e maconha. De acordo com as investigações, a vítima, que já tinha passagem por receptação e associação criminosa, estaria com dívidas de drogas e essa seria a provável motivação para o crime. Mais de três meses após o assassinato, o inquérito não foi concluído. Até o momento, ninguém foi preso.