Mortes no interior e fins de semana
Publicado em 25/06/2018
DIANA MOURA
dmoura@radiojornal.com.br
Era uma segunda-feira pela manhã, dia 19 de março de 2018, quando a cabeleireira Jéssica Ferreira, 26 anos, foi abordada pelo ex-companheiro, Robson da Silva, que não se conformava com o pedido de separação. Depois de uma discussão entre ambos, a jovem deixa o local dizendo que iria denunciá-lo. Robson seguiu Jéssica, derrubou-a no chão, e agrediu a ex-companheira várias vezes na cabeça com um paralelepípedo. Ela acabou sendo levada, em estado grave, para o Hospital da Restauração, no Recife. No dia anterior à tentativa de feminicídio, um domingo, Jéssica havia procurado a Delegacia de Bonito, cidade onde ocorreu a agressão, para prestar queixa das ameaças que vinha sofrendo. No local, ouviu de um agente que a equipe de policiais tinha se deslocado para atender a um chamado de homicídio na cidade vizinha, São Joaquim do Monte, onde outra mulher, Ivonete Maria dos Santos, fora assassinada pelo companheiro, que foi linchado pela população. “Não me deixaram registrar nem um boletim de ocorrência”, lembra Jéssica.
O funcionamento de uma delegacia, isoladamente, pode suprir uma demanda circunstancial, contribuir para que haja um acolhimento momentâneo, mas não resolve o problema maior da falta de assistência às vítimas de violência doméstica.”
Ela não desistiu. À noite, às 21h, ligou para o 190 e acionou a Polícia Militar. Na madrugada da segunda-feira, à 1h, os policiais finalmente chegaram. Ouviram tudo que Jéssica tinha a dizer, pediram que assinasse um papel e orientaram a jovem a voltar à delegacia na segunda-feira, para prestar, enfim, a sua queixa. Não deu tempo. “Se eles tivessem tomado alguma iniciativa, tudo isso que eu passei teria sido evitado. Nada funcionou, nem a delegacia nem a Polícia Militar”, lamenta Jéssica. Apesar do sofrimento e das sequelas que provocam tonturas e desmaios, a cabeleireira se considera uma vitoriosa e anuncia, no seu perfil de uma rede social, que “nasceu de novo”. Robson está preso na Penitenciária de Caruaru.
O destino de Cláudia Aguiar Rodrigues, 46, foi diferente. A representante comercial foi morta a facadas pelo ex-marido, no dia 7 de maio deste ano, em Timbaúba. Cláudia foi casada por quase 29 anos com João Climaco Rodrigues, 51. Ele, que não aceitava o pedido de divórcio, a ameaçava com frequência. Para fugir das agressões, ela chegou a se mudar para Carpina, mas continuava visitando sua cidade natal. João procurou a ex-mulher na casa da irmã, na madrugada de segunda-feira, quando ela voltava de uma festa. Depois de uma discussão, ele a assassinou.
Dois dias antes do crime, na tarde do sábado, depois de ser outra vez ameaçada por João na sexta-feira à noite, Cláudia havia procurado a Delegacia de Timbaúba para solicitar uma medida protetiva. A porta do prédio, segundo familiares da vítima, estava fechada. Acompanhada da sua irmã, deixou o local sem conseguir ser ouvida por ninguém. A cena de mulheres que não encontram acolhimento nas delegacias do interior do Estado, quando buscam proteção para episódios de violência doméstica, é frequente nos fins de semana. Justamente quando elas mais morrem.
PROBLEMA ANTIGO
Levantamento feito pelo projeto #UmaPorUma (umaporuma.com.br) aponta que, a noite da sexta-feira até a madrugada da segunda, é o período com maior número de feminicídios em Pernambuco. De janeiro a maio deste ano, 27 mulheres foram vítimas desse tipo de crime; 17 delas morreram em feriados ou fins de semana (incluindo a madrugada da segunda-feira, que termina virando um prolongamento do domingo). Destas, 9 foram assassinadas na Região Metropolitana do Recife (RMR) e 18, no interior. É exatamente nos municípios afastados da capital onde a rede de assistência é mais precária para garantir a segurança desse público, geralmente mais vulnerável.
O problema não é recente. Em dezembro de 2017, o Conselho Nacional do Ministério Público divulgou um relatório apontando que apenas 37% das delegacias do Estado funcionavam 24 horas por dia. O levantamento foi realizado presencialmente ao longo do ano de 2016. Para solucionar a questão, em fevereiro deste ano, o governo anunciou a contratação de 140 novos delegados, dos quais 103 tomaram posse no interior. O objetivo da medida era colocar um titular em cada unidade da Polícia Civil, para que nenhum profissional acumulasse os trabalhos de dois ou três municípios.
A situação, entretanto, é mais complexa do que parece. Mesmo quando a delegacia tem o seu titular, o mesmo delegado não pode trabalhar ininterruptamente todo o final de semana. “Da noite da sexta-feira até a madrugada da segunda, a maior parte das delegacias do interior funciona com apenas um agente, que registra exclusivamente os boletins de ocorrência. Não há equipe para sair do local e dar uma voz de prisão ou periciar uma cena de homicídio, por exemplo. Se houver uma morte numa destas cidades, o crime será investigado pela delegacia de plantão de uma cidade vizinha”, explica um delegado do interior que não quis se identificar.
Foi o que aconteceu quando Jéssica tentou prestar queixa de violência doméstica contra Robson. A equipe de Bonito estava fora do município. Para se ter uma ideia, a delegacia de Limoeiro, no Agreste, é responsável também pelo plantão de Feira Nova, Passira, Salgadinho, Cumaru e Machados. “É bom lembrar que delegacias guardam armas, drogas apreendidas e veículos. É preciso que esse material fique em segurança. É por isso que, muitas vezes, os prédios ficam fechados e só são abertos quando alguém procura o local para registrar o boletim”, ressalta o delegado.