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No interior, a face mais brutal do machismo

Publicado em 30/07/2018

ANA MARIA MIRANDA
anasantiagodm@gmail.com

O interior concentra o maior número de feminicídios do Estado, mas não é só a quantidade que chama atenção. A brutalidade de alguns casos, principalmente os registrados em áreas rurais, choca pela crueldade com que são cometidos. É onde o machismo assume sua face ainda mais patriarcal. A humilhação pública, a violência extrema e o menosprezo ao corpo estão presentes nos mais cruéis assassinatos. Foi assim com a agricultora Josefa Ismerina Alves, 55 anos, morta barbaramente a golpes de enxada no Sítio Oiti, na zona rural de Taquaritinga do Norte, no Agreste, no dia 1º de maio de 2018. Neném, como era conhecida, chegou a gritar por socorro, mas não houve piedade. O autor do crime, o também agricultor Paulo José da Silva, 41, vivia com Josefa há, aproximadamente, quatro anos.

Nos dias anteriores ao assassinato, os filhos que costumavam visitá-la notaram que a mãe apresentava marcas roxas pelo corpo. Porém, ao ser questionada, ela dizia que havia se machucado e não dava nenhum detalhe. Para Joseilda Alves, uma das filhas, o companheiro da mãe já a oprimia antes da agressão fatal. Além de agricultora, Josefa havia começado recentemente a costurar shorts que vendia para obter uma renda extra, independentemente de Paulo José. “Ele não deixava minha mãe comprar coisas para ela. Uma roupa, uma calcinha, ela tinha de dizer que ganhou de alguém”, relatou Joseilda. O suspeito também não gostava que os filhos - ela teve seis - de Josefa a visitassem. “Eles não brigavam na nossa frente, ela não falava nada sobre isso com ninguém. Mas, naquele dia, uma vizinha contou que ela disse que não estava mais aguentando, que queria que a gente fosse lá para levá-la embora. Justamente naquele dia”, lamentou.

A distância das comunidades rurais para os centros urbanos também dificulta a assistência às mulheres vítimas de violência. A adolescente Maria Clara das Neves Sobrinho, de apenas 12 anos, foi estuprada, engravidou do agressor e foi morta por ele no Povoado de Atalho, que fica a mais de 85 quilômetros do centro de Petrolina, no Sertão. O corpo dela foi encontrado amarrado a uma árvore pelo pescoço, próximo a um chiqueiro de porcos no dia 2 de junho de 2018. O suspeito de matar a adolescente, que é marido da tia da vítima, forjou a cena do crime para que parecesse um suicídio. Os laudos técnicos e depoimentos de testemunhas apontaram para um assassinato e os exames identificaram que Maria Clara estava grávida de, aproximadamente, dois meses. Ivan da Silva Pereira, 30 anos, foi preso, mas a crueldade do crime nunca será esquecida pela família.

Crime de gênero: 37 mulheres foram vítimas de feminicídio em Pernambuco nos seis primeiros meses de 2018

Foi também pendurado a uma árvore que encontraram o corpo da dona de casa Maria Jacqueline da Silva, 19. Ela estava nua e amarrada pelos pés e mãos. Abandonada em um matagal perto da casa em que morava no bairro José Maria Dourado, em Garanhuns, também no Agreste. Jacqueline foi encontrada no dia 29 de maio de 2018, depois de passar 72 horas desaparecida. O suspeito, o pedreiro Marcelo José Bezerra da Silva, 28, vizinho da vítima, chegou a participar das buscas pela jovem para despistar a polícia. Jacqueline havia concluído o ensino médio e ainda não trabalhava. Era casada e não tinha filhos. A morte brutal a impediu de ter um futuro.

“FAZER SOFRER”

Dos 37 casos de feminicídio registrados em Pernambuco de janeiro a junho deste ano, 22 aconteceram em cidades do interior. Para a criminalista e cientista política Perpétua Dantas, a crueldade no homicídio qualificado representa uma violência simbólica. “O recurso do meio cruel está vinculado ao ‘fazer sofrer’. Não basta agredir, matar, tem que humilhar. É como se a dor do autor fosse amenizada com o sofrimento do outro”, analisa. Ainda segundo ela, tratando-se de violência de gênero, o simbolismo está relacionado à vulnerabilidade da mulher. “É como se até na morte o homem tivesse dignidade e a mulher, não”, afirma Perpétua, que é secretária de Políticas para Mulheres de Caruaru.

De acordo com o antropólogo e coordenador do grupo de pesquisa Família, Gênero e Sexualidade (Fages) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Russel Scott, em casos de feminicídio, o homem acha que tem o controle sobre a mulher. “Porque ela não obedece a alguns padrões, ele acha que está autorizado a cometer o crime. Faz parte de um sistema patriarcal e da falta de conhecimento da autonomia feminina”, explicou. Em áreas rurais, por exemplo, há papéis bem definidos em relação às tarefas “do homem” e às “da mulher”: “As pessoas têm menos tolerância a casas chefiadas por mulheres”, contou. Segundo ele, a sensação de impunidade em cidades no interior também pode servir como ponto “favorável” aos homens que praticam este tipo de crime.

Para tentar reverter o quadro de violência contra a mulher em Cabrobó, no Sertão do Estado, o delegado titular da cidade iniciou um movimento para reativar a rede de enfrentamento à violência de gênero no município. Após assumir a delegacia, em fevereiro deste ano, Elioenai Dias Filho realizou um levantamento da violência no município e identificou um aumento no número de casos enquadrados na Lei Maria da Penha.

PAULADA NA CABEÇA

Dos seis assassinatos registrados de janeiro a junho deste ano na cidade de 34 mil habitantes, dois tiveram mulheres como vítimas e foram classificados como feminicídio. A garota de programa Ana Paula de Lima Pereira, 30, foi morta em abril com uma paulada na cabeça por um homem com quem tinha um relacionamento. O golpe foi tão forte que causou uma abertura no crânio da vítima. O suspeito está preso. Já Antônia de Souza Santos, 18 anos, foi assassinada a facadas na frente da filha de três anos e da sogra, no mês passado. O principal suspeito, o ex-companheiro dela, também foi preso.

A partir das estatísticas, o delegado provocou o diálogo com a secretaria municipal da Mulher, com o Conselho da Mulher e com a Rede de Enfrentamento da cidade. Duas reuniões já foram realizadas, no mês passado e este mês, para debater o assunto; a primeira incluiu apenas representantes dos órgãos, mas a segunda - no Alto da Temperatura, um dos bairros com maior incidência deste tipo de crime - recebeu moradores da comunidade e contou com atividades lúdicas e orientações.

“Aplicamos um questionário social perguntando a que as pessoas acreditam que esta violência está atrelada. Com base nessas informações, vamos formar uma política de atuação interna”, explica o delegado. A ideia é não atender apenas as mulheres, mas realizar trabalhos educativos com homens acusados de violência doméstica. “Se não houver nenhum tipo de ação para mudança de comportamento, esse homem vai terminar o relacionamento com uma mulher e começar a namorar com outra. A violência só vai mudar de casa, mas vai continuar existindo”, argumenta.

O delegado defende que só é possível reduzir as estatísticas de criminalidade com ações integradas entre os órgãos públicos e a população. “Segurança pública não é apenas atuação policial. A questão socioeconômica tem relação direta com os índices de violência. A ajuda da comunidade é muito importante”, ressalta Elioenai Dias Filho.

Wânia Pasinato, socióloga e assessora da USP Mulheres

“O padrão de mortes ainda é o mesmo da
década de 40

CIARA CARVALHO
ciaracalves@gmail.com

Diante dos altos índices de feminicídio no Brasil, a socióloga Wânia Pasinato, que até o final do ano passado esteve à frente da ONU Mulheres, faz o alerta. “Nós não trabalhamos com a educação da mesma forma que atuamos na repressão. Acontece que esse caminho de apenas pedir punição para os agressores não funciona. Só quando a gente investir em educação e levar essa formação de igualdade de gênero para a formação de nossas crianças é que nós vamos quebrar esse padrão que acompanha e alimenta o feminicídio.” Na análise das estratégias que precisam ser repensadas, ela inclui outro ponto crucial. Deixar de concentrar a cobrança apenas na melhoria do atendimento policial. “Todo o discurso ainda é feito como se a Delegacia da Mulher fosse uma mágica. Ela foi uma mágica lá nos anos 80, quando não existia nada. Hoje a gente tem uma política nacional que nos diz como nós devemos trabalhar, já sabemos que temos que agir em rede, temos duas legislações que dizem o que é a violência contra a mulher e o tipo de resposta que precisa ser dada. Não é possível que a gente mantenha a mesma demanda”. Wânia pesquisa sobre o tema desde a década de 90. Em entrevista, concedida por telefone, a assessora da USP Mulheres faz uma série de reflexões sobre o quanto e como a luta em favor da igualdade de gênero ainda precisa avançar.

JORNAL DO COMMERCIO - Por que os números de feminicídios continuam tão altos no Brasil? Onde estamos falhando no enfrentamento do crime de gênero?

WÂNIA PASINATO - Uma falha que eu vejo nesse processo histórico de visibilização da violência contra a mulher é uma aposta muito grande que se faz nas respostas através da criminalização da violência, em detrimento de caminhos que priorizem a prevenção. Nós não trabalhamos com a educação da mesma forma que atuamos na repressão. Toda vez que nós identificamos uma nova forma de violência contra a mulher, a primeira resposta que a sociedade demanda é a adoção de uma lei ainda mais punitiva. Mas a gente não pensa de forma preventiva, que priorize o enfrentamento da causa dessa violência e não, suas consequências. As iniciativas de prevenção ainda são muito tímidas.

JORNAL DO COMMERCIO - Há um padrão nas histórias de feminicídio. Do ponto de vista comportamental, ele se repete tanto em relação às vítimas quanto aos seus agressores. Como interromper esse ciclo?

WÂNIA PASINATO - Esse padrão que você identifica nas mortes de mulheres em Pernambuco em 2018, se nós fizermos uma pesquisa histórica, ela é muito semelhante ao padrão que você identificava lá em 1940, quando os nossos juristas criaram o argumento jurídico da legítima defesa da honra. O padrão é o mesmo porque é um padrão de comportamento da sociedade. É uma compreensão de que as mulheres precisam estar subordinadas aos desejos do homem. Que ela não é um sujeito de desejos, um sujeito de direitos, a mulher é um mero objeto. A gente tem um ponto de virada na Constituição de 1988, no sentido de assegurar a igualdade de direitos de homens e mulheres. A violência sai do espaço privado e começa a ganhar visibilidade. Passa a ser tratada pelo poder público como um problema social. Agora, toda a aposta a partir daí foi de que, se nós criássemos estruturas na polícia, na Justiça, com leis que punissem mais, nós teríamos o poder de inibir esse comportamento. Acontece que esse caminho de apenas pedir punição para os agressores não funciona. Só quando a gente investir em educação e levar essa formação de igualdade de gênero para a formação de nossas crianças é que nós vamos quebrar esse padrão que acompanha e alimenta o feminicídio.

JORNAL DO COMMERCIO - O levantamento do projeto #UmaPorUma constata que a maioria das mulheres assassinadas, com histórico de violência doméstica, não havia denunciado seus agressores. Como convencer essa mulher a fazer a denúncia, diante de uma rede tão precária de atendimento?

WÂNIA PASINATO - A gente tem que começar a pensar melhor qual é a estratégia que queremos adotar. A estratégia tem sido de dizer para a mulher: denuncie a violência que sofre. É a forma que a gente tem de fazer com que essa violência saia do privado para o público. E que o Estado possa interferir, já que ele termina sendo passivo nessa forma de violência. A gente tem mandado essa mensagem para as mulheres recorrentemente. Só que os locais onde elas procuram ajuda não respondem da forma adequada à necessidade delas. A maior parte das vezes, o Estado não faz nada, a não ser o mínimo, que é registrar a ocorrência. Então, temos que pensar duas coisas: se a mulher corre risco de morte, ela não pode ter só a porta da delegacia para pedir ajuda. Ela precisa de uma proteção imediata. E essa proteção imediata não virá da polícia. Ela precisa ter é um centro de referência aberto 24 horas para atendê-la, uma casa-abrigo ou de passagem, para onde ela possa ser encaminhada rapidamente e sair do contexto da violência. A gente precisa ter uma política que não esteja ancorada apenas das delegacias especializadas da mulher. Continuamos exigindo uma delegacia em todos os lugares, aberta 24 horas, mas esta resposta é insuficiente. Porque ela não tira a mulher do contexto de violência.

"O que me tira realmente o sono é o fato de que as mulheres continuam morrendo no Brasil e a gente não consegue mudar essa realidade porque a política de enfrentamento ainda não identifica e responde às reais necessidades de proteção dessa mulher.”

Wânia Pasinato, socióloga e assessora da USP Mulheres

JORNAL DO COMMERCIO - Então, como melhorar essa estratégia?

WÂNIA PASINATO - A gente tem que mudar o foco da nossa pressão. O foco tem que ser para que o governo crie não só delegacias. A gente erra na demanda. Porque a gente limita a denúncia à delegacia. Mas não. O sentido da denúncia não é uma denúncia policial. Quando a gente diz para a mulher: “Denuncie”, na verdade, a gente está dizendo: “Torne pública a sua situação”, “Peça ajuda”. E a ajuda não precisa ser só da polícia. Você tem que ter outros equipamentos que possam receber essa mulher e ajudá-la a sair daquela situação de violência. Porque a polícia não dá caminho nem amparo. O que ela faz é registrar um boletim policial. Quem vai determinar a prisão já nem é a polícia, mas o Judiciário. Mas todo o discurso é feito como se a Delegacia da Mulher fosse uma mágica. Ela foi uma mágica lá nos anos 80, quando não existia nada. Hoje a gente tem uma política nacional que nos diz como nós devemos trabalhar, já sabemos que temos que agir em rede, temos duas legislações que dizem o que é a violência contra a mulher e o tipo de resposta que precisa ser dada. Não é possível que a gente mantenha a mesma demanda. Além de mudar a mensagem para as mulheres, a gente precisa cobrar do Estado que ele trabalhe com uma rede integrada, porque ele tem uma responsabilidade sobre a vida dessa mulher.

JORNAL DO COMMERCIO - Em que medida, o protocolo do feminicídio vai ajudar a melhorar esse cenário?

WÂNIA PASINATO - Ele é uma diretriz para orientar as autoridades a olhar melhor e identificar o crime de feminicídio. Mas ele só terá eficácia se os diferentes órgãos do sistema de segurança e de Justiça atuarem de forma integrada. A gente tem muita dificuldade hoje de fazer com que esses processos corram de forma mais rápida, em parte, devido à falta desse trabalho em rede. O documento faz uma aposta na intersetorialidade. À frente do projeto na ONU Mulheres, nos colocamos todos os agentes das polícias, Ministério Público, Judiciário, Defensoria Pública para trabalharem juntos na elaboração desse documento. Porque nós queríamos que esses agentes tivessem uma visão compartilhada e comum sobre o conceito de violência contra a mulher e o próprio conceito de gênero.

JORNAL DO COMMERCIO - Há esperança de deixarmos o incômodo posto de 5º país no mundo com maior número de feminicídio?

WÂNIA PASINATO - Eu vejo possibilidade de mudança. Mas ela tem que acontecer também na forma como a gente se relaciona com esses números. A gente não tem que olhar apenas para o fato de que ocupamos o 5º lugar em um ranking de 80 países. A gente tem que olhar para cada uma dessas 127 mortes que aconteceram em Pernambuco no primeiro semestre de 2018 e para cada uma delas a gente tem que dar uma resposta. Eu tenho que me preocupar com o fato de que, enquanto houver uma morte de mulher, uma mulher que é estuprada, ou espancada pelo seu companheiro, a minha ação política, seja na militância, seja numa posição de governo, tem que está focada para essa mulher. Eu não posso estar pensando em grandes números. As taxas nos ajudam a pensar uma política macro, mas para desenvolver a ação no dia a dia eu tenho que me preocupar com cada uma dessas mulheres. O que me tira o sono não é exatamente esse ranking, porque eu não sei como é feita a contagem nos outros países. O que me tira realmente o sono é o fato de que as mulheres continuam morrendo no Brasil e a gente não consegue mudar essa realidade porque a política de enfrentamento ainda não identifica e responde às reais necessidades de proteção dessa mulher.

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