TRAIÇÃO Maria Lucivânia, 35, viveu uma dupla tragédia. Grávida de três meses, foi assassinada pelo próprio filho, um jovem de 19 anos

Maria Lucivânia, 35, viveu uma dupla tragédia. Grávida de três meses, foi assassinada pelo próprio filho, um jovem de 19 anos

TRAIÇÃO Maria Lucivânia, 35, viveu uma dupla tragédia. Grávida de três meses, foi assassinada pelo próprio filho, um jovem de 19 anos

Os filhos delas.
A dor deles

Publicado em 28/10/2018

ROBERTA SOARES
betasoares8@gmail.com

Os filhos são delas, as dezenas de mulheres assassinadas em Pernambuco. Mas a dor é deles, dos filhos – crianças, adolescentes ou jovens –, que perderam mães e, muitas vezes, os pais violentamente. É o abandono físico e espiritual dos filhos deixados para trás que representa o lado mais brutal do assassinato de mulheres. E quando o ato de violência é cometido pelo próprio pai, a dor e o estrago são ainda mais dilacerantes. Quase insuportáveis. Não há dúvidas, afirmam psicólogos e aqueles que assumiram o cuidado dos que ficaram. Cássio, 19 anos, sentiu o peso. Abandonou os estudos pouco mais de um mês depois de o pai, enciumado, matar a mãe com sete facadas, em Limoeiro, município do Agreste pernambucano, após 20 anos de casamento. Não suportou seguir, pelo menos por enquanto. Promete retornar à escola ano que vem. O de 14 anos, um dos quatro irmãos, também desistiu. Estava no primeiro ano do ensino médio. Os dois, quase sempre, dão sinais de agitação, de ansiedade. A tristeza está neles. Às vezes, a timidez e a imaturidade a camuflam, mas ela está lá. Basta olhar com cuidado para sentir.

Os meninos, confirma a tia Rosângela da Silva, a nova “mãe” dos sobrinhos, ficaram mais tristes e agitados depois da perda dos pais. Embora a morte de Tatiana Apolônia da Silva, 34, e Cassiano Gonçalves, 39, seja assunto evitado na casa humilde do bairro de Nossa Senhora de Fátima, em Limoeiro, a ausência deles está por toda parte. “A sorte desses meninos é que eles têm família. Tenho feito de tudo para cuidar deles. Sei que minha irmã contava com isso, que acalma a alma dela saber que estou aqui, olhando por eles, colocando para estudar, cobrando, orientando, que nossa mãe, a avó deles, também está. Tem sido difícil, muito difícil, principalmente financeiramente, mas é a nossa missão agora”, desabafa Danda, como a tia é chamada. Mãe de dois adolescentes, Rosângela revela que não esperava, a essa altura da vida, assumir tanta responsabilidade. “Agora é ficar de olho, cuidar para que não se percam na vida”, afirma.

Em Paulista, na Região Metropolitana do Recife, mais uma ferida aberta pelo assassinato de mulheres que são mães. Alexandra Moura da Silva, 34, não foi morta pelo companheiro ou pai dos filhos – teria sido eliminada como queima de arquivo por ter presenciado um duplo homicídio –, mas deixou sete filhos (cinco meninos e duas meninas) de 5 a 17 anos para trás, sem o aconchego do abraço materno. As meninas, que são as mais novas, de 5 e 7 anos, perguntam pela mãe com frequência. Indagam se ela está no céu mesmo e se as vê de lá. A de cinco anos, acostumada a dormir abraçada à mãe, sonha e chama por ela quase todas as noites. Nos sonhos, conversa com Alexandra. Agora, abraça a avó materna, a comerciante Marluce Moura, que ficou responsável por cinco dos sete netos deixados pela única filha.

“É uma ausência muito, muito sentida. Sofrida demais. Perdi minha única filha e tive que assumir tantos netos. Dois moram com os pais. Mas o restante vivia com a gente. Dependem totalmente de mim. Não têm mais ninguém”, conta Marluce Moura. Como se a perda não fosse suficiente, as duas meninas ainda viram a mãe ser baleada enquanto tentava se proteger do assassino. Até hoje, quando ouvem explosões, ficam assustadas e perguntam, ansiosas, se são tiros. O irmão mais velho, de 17, jogava bola na rua e foi quem socorreu a mãe com a ajuda de um vizinho. Alexandra tinha três tiros na barriga, perna e nádegas. Ainda passou por dois hospitais antes de falecer. O filho nunca toca no assunto. “Evitamos falar sobre a morte dela para que os meninos não sofram ainda mais. E assim vamos levando a vida”, afirma, resignada, a avó.

Levantamento do #UmaPorUma aponta que 49% das mulheres assassinadas em Pernambuco de janeiro a setembro de 2018 deixaram filhos. Eram 89 mães. E esse número pode ser ainda maior, já que em 36% dos casos investigados pelo projeto, nos nove primeiros meses deste ano, não há informações se as vítimas eram mães. O assassinato de Maria Lucivânia da Silva, 35, carrega uma dupla tragédia. Grávida de três meses, foi morta pelo próprio filho, um jovem de 19 anos. Fazia três meses que o rapaz tinha ido morar com a mãe, no distrito de Lage Grande, em Catende, na Mata Sul de Pernambuco, fugindo da perseguição de traficantes. Lucivânia deu abrigo ao filho. Mas, em meio a uma discussão, o rapaz atirou na mãe e a atingiu com vários tiros no tórax e no abdômen. Era o mais velho. Lucivânia deixou outros dois filhos, adolescentes.

Não há lugar para o ódio entre os filhos de Tatiana e Cassiano. Os quatro perdoaram o pai, apesar de ele ter assassinado a mãe com sete facadas



SEM ÓDIO Não há lugar para o ódio entre os filhos de Tatiana e Cassiano. Os quatro perdoaram o pai, apesar de ele ter assassinado a mãe com sete facadas.
Foto: Leo Motta/JC Imagem

Não há lugar para o ódio entre os filhos de Tatiana e Cassiano. Os quatro perdoaram o pai, apesar de ele ter assassinado a mãe com sete facadas

SEM ÓDIO Não há lugar para o ódio entre os filhos de Tatiana e Cassiano. Os quatro perdoaram o pai, apesar de ele ter assassinado a mãe com sete facadas.
Foto: Leo Motta/JC Imagem



MARCAS PARA A VIDA

Além da dor e da ausência, a perda da mãe, assassinada ou não pelo pai, deixa marcas nos filhos para o resto da vida. Em alguns, as sequelas são maiores do que em outros, mas em todos fica algo permanente, guardado nas emoções, prestes a explodir a qualquer momento. A psicologia ajuda a compreender esse processo de transformação.

“Os filhos são, sem dúvida, os grandes reféns da violência contra a mulher, da violência intrafamiliar. O assassinato de mulheres é terrível e a sociedade precisa combatê-lo de todas as formas. Mas essas mortes, em qualquer circunstância, será muito pior para os filhos. É uma receita que sempre dará errado. Crianças e adolescentes expostos a situações traumáticas muito provavelmente terão um potencial maior de adoecimento psíquico na vida adulta. A situação de trauma pode gerar alterações no funcionamento do cérebro, inclusive anatômicas. E isso pode acontecer em pouco tempo ou com os anos, já na vida adulta. Vai depender de cada um”, explica a psicóloga clínica Luciana Gropo.

Na avaliação da profissional, ter a mãe assassinada é um trauma semelhante ao suicídio em família. Extremamente marcante e traumático. Por isso, o recomeço é difícil e está condicionado à capacidade de superação dos familiares que ficaram em volta desses filhos. Principalmente se eles já viviam expostos a relações paternais de agressividade. “O futuro emocional dessas crianças e adolescentes vai depender da aceitação da sociedade, do afeto com que esses filhos serão criados, do apoio que terão da família que ficou. O papel desses parentes é fundamental. Assim como o acompanhamento psicológico imediato”, ensina.

Segundo Luciana Gropo, a queda no desempenho escolar, como observado nas histórias aqui registradas, é uma das consequências imediatas da perda sofrida. “Diante de uma situação de trauma, as crianças tendem a ficar menos atentas e a aumentar o nível de ansiedade. E a ansiedade aumenta a falta de atenção”, diz.

Nos casos da violência praticada pelo próprio pai, a gravidade é ainda maior, podendo gerar, inclusive, a negação da potencialidade do crime. Ao JC, três dos quatro filhos de Tatiana Apolônia afirmaram não ter raiva do pai, mesmo a mãe tendo sido assassinada com sete facadas, tendo lutado para viver, inclusive clamado por socorro enquanto era agredida. Todos os filhos o perdoam. Disseram que compreendiam o que tinha feito porque estava doente. A doença a que se referem seria uma depressão provocada pelo boato de que a companheira teria um caso extraconjugal. “Não tenho raiva de painho. Ele estava muito triste, doente. Por isso fez aquilo com mainha”, diz o caçula dos irmãos, de 9 anos.

Luciana Gropo observa que a negação é outra reação natural, esperada. “É como se culpar o pai fosse perdê-lo também. Eles pensam: já perdi minha mãe, não vou perder meu pai também. Além disso, com certeza pesa a criação machista que tiveram. Muitos entendem ou são levados a entender que o pai matou a mãe por amor”, diz a psicóloga.

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Elas escaparam. Mas ficaram as marcas

Publicado em 28/10/2018

JULLIANA DE MELO
jmelo@ne10.com.br

Foi por pouco. “Um milagre”, como disse, aliviada, a mãe de uma manicure que foi vítima de tentativa de feminicídio em setembro deste ano, no bairro do Parnamirim, Zona Norte do Recife. A mulher de 30 anos já tinha mudado de residência e alertado a dona do salão de beleza onde trabalhava de que tinha medo do ex-companheiro ir no local para agredi-la. O motivo? O mais comum para casos de crime de gênero: ela tinha se separado há dois meses e o policial militar aposentado, pai de sua filha de 10 anos, não admitia o fim do relacionamento de 12 anos. No dia 27, o homem de 47 anos invadiu o estabelecimento e baleou a mulher no rosto, abdome e tórax, na frente de funcionários e clientes, em plena luz do dia. O crime, que foi gravado pelas câmeras de vigilância e exibido nos programas policiais de televisão, demonstrou premeditação e frieza do suspeito.

A manicure foi levada por colegas para um hospital, onde passou por cirurgia e recebeu alta no dia 1° de outubro. Quase não virou mais um número nas estatísticas de assassinatos de mulheres em Pernambuco. E, além dela, outras também foram brutalmente agredidas a facadas, tiros ou queimadas com gasolina por seus companheiros ou ex-companheiros no Estado, ficando à margem da trágica conta, mas não do trauma e das marcas impingidas pelo machismo. No caso da manicure, o desfecho ao menos traz algum alento. Além de ter se recuperado dos ferimentos no corpo, o homem suspeito de tentar matá-la foi preso no dia 18 de outubro, alvo de dois mandados de prisão: um por descumprimento de medida protetiva e outro por tentativa de feminicídio.

O mês de setembro, segundo levantamento elaborado pelo projeto #UmaporUma, foi o segundo com menos casos de assassinatos de mulheres em Pernambuco (15), atrás apenas do mês de abril (13). O índice de feminicídio, no entanto, ficou acima da média do ano, que – até o momento – é de 30,76%. Nos nove primeiros meses de 2018, 182 mulheres foram executadas no Estado. Setembro somou 15 assassinatos. Em 33,33% desses casos, a morte foi determinada pela condição de gênero. Só no mês passado, foram contabilizados cinco novos crimes. Um dos casos de julho, da funcionária da banca de bichos Tayane Franciele de Santana Costa, também passou a ser considerado pela polícia como feminicídio. No somatório de janeiro a setembro de 2018, já são 56 vítimas de feminicídio. O total de casos de feminicídio contabilizados pelo projeto #UmaPorUma é o somatório dos indiciamentos feitos pela Polícia Civil (após a conclusão do inquérito) mais as denúncias oferecidas à Justiça pelo Ministério Público de Pernambuco.

Entre as motivações, o crime de gênero também segue liderando os números, com 31% dos casos, atrás de motivação ainda a esclarecer (25%) e ligação direta com o tráfico de drogas (18%). Histórias como a da policial militar Aline Ribeiro de Araújo, 31. Ela foi morta no dia 11 de setembro com dois tiros no tórax pelo ex-marido, Francielio Formiga de Lima, na casa onde morava com a filha de três anos, no bairro Patrona, em Tuparetama, Sertão pernambucano. Aline era de Pombal, na Paraíba, mas se mudou para a cidade de pouco mais de 8 mil habitantes, após ingressar na Polícia Militar de Pernambuco, há cerca de três anos. Segundo a polícia, o profissional da área de segurança tinha ciúmes dela e ainda não aceitava o fim do relacionamento, mesmo após dois anos.

Após a separação, Aline havia prestado queixa contra o ex por lesão corporal grave. Ele tentou esganá-la, quando estava na casa da mãe dela em Pombal. De acordo com o registro policial feito na época, ela foi socorrida, desacordada, pela mãe. “Eles haviam se separado em 2016, embora não tivessem oficializado o divórcio. Desde então, Aline era uma mulher solteira e, como tal, chegou a se relacionar com outras pessoas. O suspeito não aceitava isso e vivia confrontando-a e perseguindo-a. No dia da morte, tiveram uma discussão por causa de uma troca de mensagens entre a vítima e outro homem, que ele viu no celular dela. Por esse motivo, a matou”, explicou o responsável pela investigação, o delegado de Tuparetama, Allison Nunes Eulampio.

Após confessar o assassinato, Francielio foi preso preventivamente e conduzido para o presídio de Arcoverde, enquanto Aline era sepultada em sua cidade natal.

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