Por onde começa a mudança
Publicado em 02/05/2018
ADRIANA GUARDA
adrianaguarda@jc.com.br
“Essa história de que menina só pode brincar de fazer chazinho pra boneca é chata, esquisita e sem graça. As brincadeiras (consideradas) de menino são sempre mais livres e divertidas. Eu acho que deveria ser tudo igual para menino e menina, homem e mulher, independentemente de jeito, raça, se somos pobres ou ricos.” A fala empoderada é de uma menina de voz doce, batom rosa e trança no cabelo. Estudante da rede municipal de ensino do Recife, a pequena Yasmin Cavalcante, 10 anos, é uma das participantes do programa Maria da Penha vai à Escola. Presente em 34 cidades pernambucanas, do Grande Recife ao Sertão, o projeto ensina igualdade de gênero para evitar que, no futuro, a violência se transforme em repertório comum na vida de homens e mulheres.
Mudar a maneira como as crianças são educadas é um ponto de partida. O JC acompanhou a realização das oficinas do programa no 5º ano da Escola Municipal Pastor José Munguba Sobrinho, no bairro do Jordão, zona sul do Recife. “Durante os encontros, o machismo aprendido (e naturalizado) dentro de casa é reproduzido por meninos e meninas, mas depois as crianças vão tomando consciência”, diz a educadora social da Secretaria da Mulher do Recife, Alberjane Farias.
Numa das dinâmicas, as educadoras projetam imagens de atividades domésticas e pedem que os alunos indiquem se executar cada uma é papel de homem ou de mulher. Pelas respostas, fazer comida, cuidar dos filhos e lavar roupa são apontadas como tarefas exclusivamente femininas. Já as contas da casa devem ser divididas, enquanto o lazer é algo destinado aos homens em 90% das respostas.
Menina não tem que brincar só de boneca. Meninos têm brincadeiras mais divertidas. Todos podem brincar do que quiser.”
Os meninos precisam controlar a liberdade com as meninas. Eles têm que respeitar se a gente não quer permitir certos tipos de brincadeira.”
Na minha casa a gente divide as tarefas. Não importa se somos meninos. Eu lavo pratos e varro casa, enquanto meu irmão lava banheiro.”
A Lei Maria da Penha existe para proteger as mulheres contra a violência. Já vi muitos casos na televisão e acho que os homens fazem essas coisas por raiva e ciúme.”
Um vídeo contando a história dos irmãos gêmeos Ana e João parece despertar a sensibilidade das crianças para o problema da desigualdade entre meninos e meninas.
Enquanto na barriga da mãe eles eram iguais, depois que nascem a vida vai ficando mais difícil para Ana. “O vídeo mostra que a menina vai vestir rosa e o menino azul, que ela terá de ajudar nos serviços da casa, enquanto o irmão brinca e que, na vida adulta, ele vai ganhar mais do que ela. Diante disso, as crianças começam a perceber que há uma desigualdade entre os dois e a refletir sobe isso”, observa Alberjane.
Nas conversas durante a oficina, meninos relatam que os pais não aceitam brincadeiras com bonecas e estabelecem regras como “não voltar apanhado para casa”. No universo dos meninos ainda persiste o conceito de masculinidade baseado na ideia de que “homem não chora”.
“Para desconstruir esse modelo de educação sexista, o programa Maria da Penha vai à Escola discute noções de cidadania, igualdade de gênero e a importância da Lei Maria da Penha. Nossa missão é trabalhar a formação dessa meninada para evitar que se transformem em homens agressores e mulheres desconhecedoras de seus direitos”, explica a secretária da Mulher do Recife, Cida Pedrosa.
Estimulados pelas educadoras, as crianças contam suas vivências em casa. Ícaro Gino de Lima, 10, diz que divide as tarefas domésticas com os irmãos. “Eu lavo prato e varro casa”, conta. A sala do 5º ano também é cheia de exemplos de meninas empoderadas. Gabriela Valentim Régis, 11, sabe que a Lei Maria da Penha foi criada para proteger as mulheres contra a violência, enquanto Williane Júlia Santana, 10, fala de limites e de respeito que os meninos devem ter com as meninas.
No Recife, o Maria da Penha vai à Escola começou a ser realizado em 2014, atendendo a crianças do 3º ao 5º ano. “A partir de 2017 o programa teve um upgrade e foi ampliado para as salas do 6º ao 9º ano e para as turmas do Ensino de Jovens, Adultos e Idosos (EJAI). Para este 2018, uma das novidades será o uso de jogos digitais, usados como parte da metodologia para tornar as oficinas mais lúdicas”, adianta a coordenadora pedagógica do programa, Fábia Barbosa. De 2014 até os primeiros meses deste ano, o programa já beneficiou 11,3 mil alunos da rede municipal do Recife.
Quando o assunto é a Lei Maria da Penha, as crianças respondem que ela serve para prender “quem bate em mulher”. Sancionada em setembro de 2006, a Lei 11.340 entrou em vigor 23 anos depois do caso de violência contra Maria da Penha Maia Fernandes, que emprestou seu nome à lei. Era noite de domingo do dia 29 de maio de 1983 quando a farmacêutica cearense levou um tiro do então marido. Ela ficou paraplégica e passou anos lutando pela condenação do agressor. Julgado em 1991 e 1996, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveiros conseguiu anular as decisões. Em 2001, o caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Brasil foi condenado por omissão, tolerância e impunidade nos casos de violência contra a mulher. A repercussão internacional resultou na condenação de Marco Antonio em 2002, mas ele só cumpriu dois dos 13 anos de pena. Quatro anos depois foi criada a Lei Maria da Penha, principal instrumento contra a violência doméstica no Brasil.