A porta-voz da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, é enfática: todo caso de assassinato de mulheres deveria, de cara, ser tratado como feminicídio. Porque isso muda o olhar do investigador para a cena do crime. Porque evita que provas importantes se percam na hora de apontar a motivação de gênero. Justamente o contrário do que é feito hoje. Não raro, casos de feminicídio até são investigados como homicídio qualificado, mas sem considerar a qualificadora que aponta a motivação de gênero. O que só aumenta a subnotificação dos crimes onde a mulher é assassinada pela condição de ser mulher. Nessa conversa com o projeto #UmaPorUma, Nadine Gasman reforça que a solução para a violência contra a mulher está na prevenção. É o que todos os especialistas apontam, mas, na prática, esse caminho ainda está longe de virar realidade.
JORNAL DO COMMERCIO - O Senado brasileiro aprovou no início do mês de agosto de 2018 projeto de lei que cria o crime de importunação sexual, para enquadrar, por exemplo, os casos de assédio em transporte público. Até que ponto a senhora avalia que iniciativas como essa, de fato, conseguem reduzir a violência contra a mulher? A punição, por si só, intimida o agressor?
NADINE GASMAN - As penas, sozinhas, não são suficientes, mas são necessárias. É um avanço. Mostra muito claramente para a sociedade brasileira que essa conduta é um crime e não será mais aceita. Essa mensagem é muito importante. Agora para uma lei ter eficácia precisa ser efetivamente implementada. E ela precisa estar associada a medidas de prevenção, ao empoderamento das meninas. Não é uma ação isolada que vai erradicar a violência contra a mulher. E, sim, um conjunto de abordagens integradas. Tem que investigar, processar e julgar com uma perspectiva de gênero.
JORNAL DO COMMERCIO - A Lei do Feminicídio completou três anos, ainda amargando índices altíssimos de assassinato de mulheres no País. Por que esse quadro não muda?
NADINE GASMAN - Porque você tem um extrato da sociedade que é machista, misógina, que está punindo as mulheres por serem mulheres. Só se muda isso, de forma profunda, com educação. É preciso ter o mesmo discurso na escola, na família, na comunidade, na mídia, ressaltando o valor de todas as vidas humanas, do respeito à mulher e à diversidade.
JORNAL DO COMMERCIO - Na contramão dessa urgência, há uma pauta conservadora que tem se imposto nos debates nacionais. Como garantir que a discussão de gênero chegue, por exemplo, à escola?
NADINE GASMAN - O ponto chave é informação. O trabalho que vocês estão fazendo em Pernambuco, com este projeto, seguindo os casos, é fundamental. Porque sai dos números e conta as histórias. Mostra o rosto, a luta por Justiça e isso força a sociedade a se perguntar: como podemos prevenir essas mortes? Ter informação sobre a violência doméstica, estar junto com as mulheres, chamar a polícia, levar ao hospital, tudo isso vai construindo uma postura que ajuda a prevenir o feminicídio. Essa discussão é especialmente importante este ano, quando estamos comemorando os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é um marco civilizatório da humanidade, para reafirmar que todos somos iguais. Não importa sexo, raça, classe social.
O ponto chave é informação. O trabalho que vocês estão fazendo em Pernambuco, com este projeto, seguindo os casos, é fundamental. Porque sai dos números e conta as histórias. Mostra o rosto, a luta por Justiça e isso força a sociedade a se perguntar: como podemos prevenir essas mortes?"
JC - Mostrar que existe um padrão de comportamento nos crimes de gêneros, tanto de agressores quanto das vítimas, ajuda a desconstruir o discurso de setores mais conservadores de que há um exagero quando se fala em feminicídio?
NADINE - Isso tem um impacto muito grande. Porque você está mostrando as consequências de uma realidade que existe nas famílias, na sociedade. Esse padrão mostra que o problema atinge a todas, independentemente de região e classe social. O menosprezo, o ódio, a posse, é disso que precisamos falar. Quando você mostra isso, não há outra saída senão a prevenção.
JC - O tempo todo dizemos às mulheres: denunciem. Mas a fragilidade da rede de assistência ainda é um grande obstáculo para garantir a proteção dessa mulher. Que estratégias mais contundentes precisamos adotar para pressionar a melhoria dessa rede?
NADINE - A gente tem que insistir na denúncia sempre. E, em outra frente, cobrar a melhoria do serviço. Essa é uma luta diária. Aumentar a demanda também é uma forma de exigir mais qualidade no atendimento. O Estado tem que fazer a sua parte, ter políticas que garantam o acolhimento dessa mulher. Quantidade e qualidade precisam caminhar juntos.
JC - Os municípios estão fazendo a sua parte, no que diz respeito ao enfrentamento à violência contra a mulher? Ou ainda transferem essa responsabilidade para o Estado?
NADINE - As realidades nesse Brasil gigantesco são muito diferentes. Dependendo do município, a resposta é sim. Mas, em geral, é preciso muito mais investimento nas ações municipais, que atendem a mulher diretamente onde ela mora e sofre a agressão. Para isso, ainda precisamos de muito mais engajamento por parte dos gestores municipais.
JC - Há um padrão no comportamento dos agressores. Não só em relação ao machismo, mas também nas estratégias de manter a mulher presa às relações abusivas. Estamos dando a devida atenção a esses agressores? Diante de tantos desafios, essa deveria ser uma prioridade?
NADINE - Temos que trabalhar com os agressores, com certeza. Especialmente o tema das masculinidades. Quando a gente está falando de prevenção, está tratando também de falar com os homens sobre a igualdade de gênero. Isso já acontece no ambiente judicial, no que diz respeito à punição. Mas o mais importante realmente é levar essa conversa para as escolas, para a mídia, colocar em evidência imagens diferentes, de homens que são solidários. Mudar a cultura que acha que os homens têm que ser sempre fortes, machos.
JC - A ONU Mulheres tem um trabalho pioneiro em relação à adoção do protocolo do feminicídio nos Estados brasileiros*. Em que medida o protocolo vai ajudar a reduzir a subnotificação dos casos que ainda ocorre de forma tão acentuada?
NADINE - Não temos uma investigação como teríamos que ter. Todo o assassinato de mulher deveria ter como motivação inicial o feminicídio. Porque é fundamental que toda a investigação considere as características do crime com uma perspectiva de gênero. Isso faz com que o olhar do investigador seja muito diferente do que se você já nomear como um homicídio simples. O protocolo de investigação, processamento e julgamento de feminicídio traz essa orientação. Então, deveria-se investigar o caso como feminicídio desde o primeiro momento. E, quando a investigação apontasse para outra motivação, aí, sim, o crime de gênero seria descartado.
JC - Justamente o contrário do que é feito hoje...
NADINE - Exatamente. Por isso é tão importante a adoção do protocolo por parte dos Estados e municípios. Ele traz uma experiência mundial sobre o tema, de como fazer a investigação sob essa perspectiva e de aprimorar as técnicas corretas, necessárias nesse tipo de situação. E nada impede que, na ausência de provas que confirmem o feminicídio, a motivação seja modificada. Nós temos falado sobre isso com juízes, promotores, procuradores, defensores públicos. Porque se você não entra com a perspectiva de que aquele assassinato foi motivado por misoginia, ódio, posse, com as características de crime de gênero, você pode deixar de buscar provas que são muito importantes.
* Na terça-feira (28), será lançado o Protocolo de Feminicídio de Pernambuco. Com isso, o Estado começa a aderir às diretrizes do Modelo Latino-Americano de Investigação de Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero.