Vulneráveis até na criminalidade
Publicado em 01/05/2018
ROBERTA SOARES
betasoares8@gmail.com
As mulheres assassinadas por ligação com o crime parecem ter menos direitos. A morte delas dói e incomoda menos. Não choca como o feminicídio ou os crimes sexuais. Por serem, de alguma forma, associadas à criminalidade. É como se pudessem morrer de violência extrema. Seus corpos podem ser usados da forma que se desejar. Seja para mandar recado ou marcar território no mundo do crime. Com Luana Maria da Silva, 22 anos, e Theolayne Maria Firmino, 21, foi assim. O corpo de Luana estava caído no meio da rua, no Centro de Igarassu, na Região Metropolitana do Recife, para todos verem. Passava um recado. Quatro tiros nas costas e três no tórax. No bolso da vítima um cachimbo de crack, droga que a acompanhava desde o fim da infância. Roubou o tráfico duas vezes. Theolayne devia ao tráfico e foi assassinada com vários tiros na cabeça, pernas e costas, tendo o filho recém-nascido nos braços. Morreu sentada no sofá de casa, em Escada, na Mata Sul do Estado, com o bebê agarrado a ela. O filho de cinco anos foi quem o tirou dos braços da mãe morta.
Luana foi testada antes. Havia roubado algumas pedras de crack de traficantes que atuam na comunidade do Bambu, em Igarassu, e depois de algum tempo voltou ao local, onde encontrou mais drogas. Ao roubá-las, teve sua sentença de morte confirmada. Morreu só pele e ossos, com 30 quilos e descartada pelos traficantes que havia roubado. Já Theolayne teve, ao menos, um parceiro de morte – o companheiro também viciado, assassinado no mesmo dia, sobre a cama do casal, com vários tiros de espingarda calibre 12.
As mulheres são facilmente assassinadas no mundo do crime porque, pela função subalterna que sempre exercem, são vistas como seres substituíveis.
A vulnerabilidade a que ficam expostas é enorme e esse é o perigo. Por isso, é preciso combater o discurso e a prática punitiva da sociedade. Vivemos um tempo em que se pune por tudo. E é a mulher quem mais sofre nesse cenário.”
A porta de entrada e a sentença de morte das mulheres envolvidas com o crime sempre se dá através do tráfico de drogas. Os números levantados pelo projeto #UmaPorUma confirmam essa realidade. Das 77 mulheres assassinadas entre janeiro e março de 2018, 40% tinham alguma relação com o crime – em sua totalidade o tráfico de drogas. Foram 31 mortes. Dessas, 20 tinham ligação direta e 11, indireta. Nas duas situações, a vulnerabilidade da mulher é extrema, perversa. No crime, elas estão sempre em funções subalternas. São foguetes, aviões ou usadas para guardar drogas. Às vezes em casa, quase sempre no próprio corpo. Por serem mulheres, despistam melhor a desconfiança da sociedade e, principalmente, da polícia. Nunca estão na linha de frente do comando. É raro vê-las como gerentes das bocas de fumo ou contadoras do tráfico. Como a maioria também é usuária, as facilidades se unem.
“A mulher opta pelo tráfico porque é um crime mais fácil, no qual ela pode se encaixar. Nós, mulheres, não metemos medo. Se fôssemos assaltar, por exemplo, não iríamos impor medo. Provavelmente, muitas das vítimas, principalmente se fossem homens, reagiriam, resistiriam em ceder. No tráfico, as mulheres podem trabalhar em casa, cuidar dos filhos, da família. A grande maioria, inclusive, entra no mundo do crime pelas dificuldades sociais e econômicas que as cercam. O desemprego e o subemprego as levam a isso”, analisa a professora de Direito Penal e Criminologia das Universidades Federal de Pernambuco (UFPE) e Católica de Pernambuco (Unicap), Marília Montenegro.
Outra face perversa desse cenário é que essa relação é a que mais mata a mulher e a encarcera no Brasil. Em Pernambuco ainda mais. “A ligação com o tráfico de drogas é o princípio de tudo e, apesar da vulnerabilidade a que essas mulheres estão expostas, é uma relação que explodiu no País. Os casos de encarceramento feminino por envolvimento com o tráfico de drogas aumentaram 700% entre 2000 e 2018. Enquanto o de homens subiu de 200% a 300%. Nacionalmente, 68% das mulheres presas estão na cadeia por relação com o tráfico. Em Pernambuco esse percentual chega a 73%. E o que é feito para mudar isso?”, questiona a pesquisadora de gênero e encarceramento da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionista, Ingrid Farias.
Em paralelo ao crescente fenômeno, a morte e a prisão de mulheres pelo tráfico incomodam menos. “Não vamos romantizar excessivamente o envolvimento das mulheres com o tráfico de drogas. Uma visão do passado quando se achava que as mulheres só eram presas porque levavam drogas para os homens, fossem maridos, namorados ou irmãos. Isso mudou, elas viraram usuárias e vendedoras também. Até pela facilidade de se encaixar nesse tipo de crime, como já foi citado. Mas são facilmente assassinadas nesse mundo porque, pela função subalterna que sempre exercem, são vistas como seres substituíveis”, pontua Ingrid Farias.
LÓGICA PERVERSA
O triplo homicídio de Ângela, Rejane e Natali – a segunda uma adolescente de 16 anos e a terceira uma jovem grávida de 18 –, no bairro do Monte, em Olinda, em janeiro deste ano, reflete a lógica perversa a que se refere a pesquisadora. É um exemplo do quanto a mulher é vulnerável e descartável quando entra, direta ou indiretamente, no mundo do crime. As três, pelo que apurou a Polícia Civil, trabalhavam para o traficante Jurandir Francisco Xavier Júnior, o Júnior Box, suspeito de diversos homicídios – inclusive de mulheres – no Grande Recife, mesmo estando preso desde 2008. Guardavam as drogas em casa e, às vezes, parte do dinheiro obtido com a venda do produto. Tinham a confiança do traficante.
Mas, assim como tantas, foram descartadas. Brutalmente executadas. De nada adiantou a suposta confiança. Quatro homens foram enviados, encapuzados, para assassinar as três e uma quarta mulher, que também estava na casa e sobreviveu. Todas receberam diversos tiros não só na cabeça, mas pelo corpo. Num rápido lampejo de consideração, os assassinos permitiram que as cinco crianças que estavam na mesma casa deixassem o imóvel para serem poupadas. Depois disso, descarregaram suas armas. Pouco importou se Ângela era parceira de Júnior Box há muito tempo, se a filha dela, Rejane, tinha apenas 16 anos, ou se Natali estava na 25ª semana de gestação. Foram executadas friamente.
“É por isso que não podemos separar o gênero dessa análise. A mulher é vista como uma peça muito mais descartável no mundo do crime. É um corpo que esconde a droga, um perfil que disfarça e, ao mesmo tempo, um alvo fácil porque necessita prover a família, a casa, os filhos. E é essa mesma mulher quem sofre uma maior cobrança da sociedade por se envolver com o crime. Porque as mulheres não foram criadas para transgredir as regras. As que o fazem, sofrem”, acrescenta Marília Montenegro.
A presença da mulher no crime, quando comparada a do homem, ainda é pequena. Talvez, por isso, seja tão negligenciada pela sociedade e poder público. Em Pernambuco, apenas 4,8% da população carcerária são do sexo feminino (1.447 mulheres para 29.590 homens). Quase 56% delas estão presas por tráfico de drogas, 10,9% por homicídio e 1,6% por latrocínio (assalto seguido de morte). A diferença é pulverizada em outros crimes, como roubo e furto. “Mas a vulnerabilidade a que ficam expostas é enorme e esse é o perigo. Por isso, é preciso combater o discurso e a prática punitiva da sociedade. Vivemos um tempo em que se pune por tudo. Porque é a mulher quem mais sofre nesse cenário. Ela é a mais cobrada e a mais punida de todas as formas”, avalia a pesquisadora Ingrid Farias.